ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

As aventuras de Petrônio - (Conto medieval - Por Luís Carlos Freire - 1994-2017)


AS AVENTURAS DE PETRÔNIO 
(Conto medieval - Por Luís Carlos Freire - 1994 - 2017)

Houve uma época que a população mundial era incomparavelmente menor. Os lugares tinham denominações diferentes, como reinos, condados, ducados, aldeias e outros. Os reis moravam em castelos construídos em lugares estratégicos para que seus habitantes tivessem visão privilegiada das cercanias até perder-se de vista. Essas construções eram verdadeiras fortalezas edificadas sobre montanhas, desfiladeiros ou penhascos protegidos por rios, pontes suspensas ou móveis, fossos profundos, guarnecidos por armeiros e flecheiros que viviam em permanente vigília.
Os reinos eram muito distantes uns dos outros, separados por florestas, bosques, desertos, mares, cânions, rios, montanhas ou gelo. As estradas - recursos de luxo de tão raras - eram precárias, mais pareciam túneis feitos por sem-fim de árvores e arbustos serpenteando a mata quase intransponível. 
As crianças cresciam ouvindo dos mais velhos que esses caminhos eram permeados de salteadores, assassinos e toda sorte de animais selvagens. As viagens ocorriam através de veredas estreitas, abertas a facão. Viajar de um reino para outro exigia coragem extraordinária, pois as distâncias obrigavam os viajantes a montar acampamento no meio do caminho ou pernoitar em estalagens nem sempre confiáveis.
Os mercadores, mascates, caixeiros viajantes, menestréis, ilusionistas, mambembes costumavam se reunir provisoriamente em aldeias, aguardando outros viajantes para seguirem em grupo. Quando um rei visitava um reino diferente, o fazia com comitivas que chegavam a ter mais de cem homens em sua guarda, dependendo da região e distância.
Durante as viagens as poucas aldeias serviam não apenas para descansar, mas também trocar informações, ora em tabernas, ora em estalagens, ora em vivendas. Ali ficavam sabendo dos fatos ocorridos nesses caminhos ermos e muitas vezes cheios de emboscadas e malassombros. Sempre alguém tinha uma história envolvendo roubos, assassinatos, faunos, lobisomens, demônios e mulheres de branco pedindo carona. Os bosques eram pincelados por histórias fantásticas, despertando pavor em quem as ouvia.
Mas, como se sabe, sempre existiram personagens corajosos que empreendiam longas viagens, prontos para qualquer desafio. Num desses reinos havia uma aldeia chamada Santo Isidoro, onde morava um viúvo chamado Expedito, homem culto, próspero e trabalhador, pai de cinco filhos que seguiram os seus ensinamentos de honestidade, bondade e justiça. Eles possuíam extenso parreiral de videiras e oliveiras. Também eram ferreiros, fabricantes de armaduras, rodas para carruagens e carroças, além de carpinteiros, inclusive faziam belos arcos, flechas e aljavas muito apreciadas em toda região.
Certo dia, seu filho caçula Petrônio chamou o pai e disse:
- Papai, o senhor sabe que, igualmente a meus irmãos, sempre o amei, estive do vosso lado e o ajudei. Sou muito grato aos ensinamentos que o senhor nos deu, sempre pautado de sabedoria. Mesmo viúvo, o senhor manteve a tranquilidade e fez o papel de pai e mãe. Eu o chamei para comunicar-lhe que quero conhecer o mundo. Pretendo deixar a nossa casa, mas para isso o senhor deve dar a parte que me cabe como herança. Estou resolvido a buscar outros horizontes e tentar a vida em outros reinos.  Só vos peço que acredite em mim e me abençoe nessa missão.
O pai o ouviu atentamente. Ele sempre observou em Petrônio um espírito irrequieto e aventureiro, embora muito responsável e trabalhador. Então respondeu-lhe:
- Amado filho, eu sempre soube que esse dia chegaria. Vosmecê não sabe o quanto as suas palavras me tocam; um dia eu também deixei a casa de meus pais para cuidar da minha vida. Não se preocupe que vou providenciar a sua parte. Mas saiba: se os seus sonhos não derem certo, nunca esqueça que eu e os seus irmãos estaremos aqui de braços abertos para acolhê-lo com amor. Tenha muito cuidado na sua viagem e sempre procure pessoas boas para estar ao vosso lado. Lembre-se “o bom filho a casa torna”.
Após a conversa, ambos se abraçaram e foram cuidar dos afazeres. Passadas duas semanas, o senhor Expedito chamou Petrônio e entregou-lhe a sua parte. Deu-lhe dois belos cavalos árabes de trote macio e dois jumentos de carga excelentes para viagem. Num deles encangou duas enormes bolsas de couro repletas de moedas de ouro. Petrônio abraçou o pai e o agradeceu. No outro dia, aos primeiros raios de sol, despediu-se dos irmãos, recebeu a benção do pai e partiu cheio de ansiedade. Ele cresceu ouvindo os mais velhos contando inúmeras estórias de reinos distantes e sempre sonhou conhecer lugares novos, ampliar suas amizades e viver novas experiências.
As horas passaram e o jovem aventureiro desapareceu na mata que se espraiava a se perder de vista. Nela predominavam carvalhos centenários, de troncos curtos, copas volumosas, galhos retorcidos e largos sobraçando os arbustos do solo. As árvores se agarravam umas às outras, enlaçadas por cipós que bloqueavam os raios do sol e a claridade da lua. 
Havia poucos lugares cuja vegetação se distava consideravelmente, e numa espécie de clareira descortinavam paisagens ensolaradas e paradisíacas. Os raios alaranjados do sol projetavam uma luz que cintilava, iluminando furtivamente os galhos, as flores e até mesmo algum animal pego de surpresa, que disparava, assustado. Tudo isso encantava o viajante. Até mesmo os cenários quase intransponíveis e de puro aspecto selvagem.
Os pensamentos de Petrônio eram permeados de histórias, castelos, reinos, combates e aventuras. Por vezes a vastidão e a solidão que se revelava a cada galope vencido lhe impunham uma espécie de medo. Mas realmente seria essa a sensação de um homem que se prestava àquela aventura?

O CAVALEIRO MUNIR MOHAMAD

Ao margear um pequeno riacho ouviu o murmurar de água. O som se intensificou exatamente num declive onde uma enorme pedra bloqueou a passagem. A água se desviou ao redor do obstáculo, produzindo uma melodiosa sinfonia.  Ele desceu a colina viu um velho casebre em cujo alpendre um homem estava totalmente amarrado.
O indivíduo vestia um dishdashah e trazia a cabeça envolvida por um keffyeh. A princípio pensou tratar-se de uma armadilha, depois supôs ser uma infeliz vítima dos transgressores tão falados. Mas como era muito corajoso, apeou do cavalo com sua arma em punho. Ao menor sinal de emboscada, estava preparado para varar o infeliz com uma das flechas que o pai o presenteara. Devagarinho foi palmilhando cada centímetro de chão como um leopardo no encalço de uma presa. Quando chegou próximo da esquisita cena, sem que esboçasse qualquer palavra, ouviu:
- Salamaleque, meu bom cavaleiro!!! Não se preocupe, eu mesmo me amarrei quando ouvi o trotar do vosso cavalo. Não sou um homem mau igual a tantos que cortam esses bosques. Quero apenas demonstrar-lhe uma especial habilidade que tenho e duvido que o cavalheiro já tenha visto algo igual.
Petrônio o observou com estranheza. Embora fosse uma cena esquisita, sentia honestidade naquelas palavras. Restou-lhe perguntar:
- Mas por que o senhor fez isso?! Confesso que é muito estranho. Pensei que o senhor havia sido vítima de um bando de ladrões. Por qual razão alguém amarra a si próprio numa selva infinita como essa?
E o homem amarrado respondeu:
- Para ganhar algumas moedas. Sei fazer uma coisa que o senhor nunca viu, e com certeza gostará e se divertirá muito.
Ainda mais admirado, restou a Petrônio perguntar-lhe:
- Sim, mas que coisa tão especial é essa?                              
- É o seguinte, fique me observando. Enquanto o senhor piscar os olhos eu já estarei desamarrado. Quero demonstrar-lhe o quanto sou rápido, ou melhor, veloz, muito mais veloz que a flecha que está no vosso arco.
Petrônio riu. Então o homem soltou o seguinte refrão:
- É melhor ser objeto de riso do que rir dos outros.
A reflexão do homem deixou Petrônio meio sem graça, portanto preferiu fazer ares de quem estava somente estranhando. O cavaleiro de Santo Isidoro sabia que estava diante de uma raça famosa pela lábia, portanto disse:
- O cavaleiro só pode estar brincando comigo. Diga a verdade, chame logo o sarraceno que o amarrou. Se o vosso objetivo é conseguir alimento, tenho aqui algumas bolachas...
Nesse instante o estranho cavalheiro o interrompeu:
- Nada disso, nobre cavaleiro; eu estou só e não quero comida. Percebo que és um fidalgo, usas um gibão galante, tens animais muito valiosos. Diga-me uma coisa: se eu fizer a demonstração vosmecê me recompensa?
Ainda mais admirado, Petrônio deu uma bela gargalhada. Logo supôs tratar-se de algum maluco. Ele conhecia muitos modelos de nós e percebeu que além de o homem estar bem amarrado, havia vários nós no emaranhado de cordas. Era impossível alguém se desvencilhar daquilo sem ajuda e com a velocidade que ele prometia. Mas eis que enquanto gargalhou, fechou os olhos e quando abriu deu-se de cara com o dito cujo, de pé com a corda totalmente desenrolada no chão. Petrônio ficou perplexo diante daquela atitude fantástica.
- Santo Deus!!! Como o senhor fez isso?!
- Eu cumpri o prometido. Percebi que vosmecê não acreditou, então fiz a demonstração. Acreditas agora?
Enquanto Petrônio piscou os olhos o homem apareceu novamente todo amarrado. Petrônio ficou estarrecido. Estava diante de um feito extraordinário. Não havia como desacreditar. E, numa outra piscada, deu-se com o homem totalmente desamarrado a perguntar-lhe:
- E o meu dinheirinho? Não achas que mereço!
No mesmo instante Petrônio respondeu:
- Meu Deus! O senhor é um raio.
- Nada disso, não me ofenda, sou mais veloz que raios, flechas, coriscos, trovões, meteoros e cometas.
Novamente Petrônio deu uma gostosa gargalhada, mas dessa vez, por razões diferentes. Estava maravilhado com aquela figura tão singular. Então o dito homem apresentou-se, apertando-lhe as mãos.
- Meu nome é Munir Mohamad. Sou um viajante sem rumo. Ando por todos os caminhos, conheço a maioria dos reinos e quase o mundo inteiro. Sei onde vivem animais mais gigantescos e perigosos, os mares e oceanos mais profundos, as mais extensas geleiras, os rios mais inacreditáveis. Conheço quase todos os reinos, reis, rainhas, príncipes, princesas bons e maus. Conheço os castelos mais distantes; alguns estão construídos nos cumes dos penhascos, ligados por pontes móveis que são recolhidas quando seus habitantes estão dentro com seus vastos tesouros, assim se protegem dos salteadores. Conheço castelos onde os reis são bons e vivem em comunhão com os plebeus. Porém, sei de reis perversos, que matam por diversão, outros, mercenários e enganadores, sacrificam os plebeus com altos impostos. Sei onde moram os perigos de cada trecho dessas infinitas florestas.
Enquanto Munir Mohamad falava, Petrônio olhava-o, admirado. Contrariando a impressão que teve no início, percebeu que estava diante de um homem bom, experiente e viajado. A imagem patética construída no primeiro momento, diluiu-se instantaneamente, e o que também chamou-lhe a atenção foi a simplicidade do aventureiro. Diante da singularidade daquela experiência, perguntou-lhe:
- Tenho uma proposta a fazer-lhe. Noto que o cavalheiro é um homem bom. Eu também ando pelo mundo, mas sou iniciante. Aceitas ser meu companheiro de viagem? Prometo que nada lhe faltará.
Ouvindo a proposta atentamente, Munir Mohamad respondeu-lhe:
- É uma honra receber tal convite, pois vejo que o cavalheiro é um homem jovem e precisa do auxílio de pessoa experiente. Como já disse, percebo que és um fidalgo ou algo parecido, e mesmo assim trazes uma simplicidade cativante. Estou ao vosso dispor.
- Sim, estou aqui e prometo-lhe muito mais.
Petrônio deu-lhe uma moeda de ouro, alegrando-o imensamente. Foi oferecido a Munir Mohamad o outro jumento, mas ele recusou, preferindo suas pernas prodigiosas. E lá se foram a caminho de uma nova aventura.

O CAVALEIRO OTACÍLIO

Após dois dias de viagem os dois amigos chegaram numa aldeia onde acontecia uma justa, brincadeira entre dois cavaleiros armados com lanças. Era tradição daquela região, e ao mesmo tempo, exercício de fortalecimento diante de ataques súbitos de invasores. Eles se demoraram algum tempo empolgados com o treino. Eram muitos cavaleiros, os quais se enfrentavam ora em grupo ora individualmente. Depois de se divertirem muito com os viajantes foram para uma hospedaria fazer as refeições.
No outro dia bem cedo conheceram um cavalheiro que também passava por ali. Logo começaram a conversar, pois houve simpatia entre eles. O rapaz chamava-se Otacílio. Trazia na cinta uma adaga de dois gumes, um machado de batalha, ricamente incrustado com entalhes sarracenos, e nas costas um arco e uma aljava cheia de flechas. Certamente percebendo o aspecto lorde de Petrônio, e almejando ganhar algumas moedas, foi logo foi dizendo:
- Sou exímio flecheiro e tenho uma mira perfeita. Não há alvo que eu não atinja e não há distância que eu não enxergue.
Os dois amigos ficaram impressionados com aquelas palavras, então Petrônio perguntou:
- O cavaleiro pode fazer uma demonstração?
- Claro, basta subirmos aquela montanha.
E lá se foram os três homens por uma trilha que findava no local escolhido, onde se tinha uma visão privilegiada de toda a região. Então Otacílio disse:
- Os senhores estão vendo aquela montanha lá longe?
- Onde? Perguntou Petrônio.
- A primeira. Olhe para o horizonte. Atrás daquela montanha há outra mais pontiaguda. Atrás dela há uma mais plana no topo. Depois dessa há um penhasco bem alto. Sobre ele há um cinamomo florido. Os falcões gostam muito dessa árvore, e nesse exato momento um falcão branco pousou num de seus galhos. Vou flechá-lo daqui, veja só...
- Um momento! interrompeu Petrônio – Eu mal consigo enxergar a primeira montanha e vosmecê quer que eu enxergue os cafundós de Judas... só vejo o azulão do céu. Se eu não estiver enganado, e se meu senso de percepção de distância não estiver falhando, esse pé de cinamomo está a exatamente a mil quilômetros daqui. É impossível uma flecha ter esse alcance extraordinário e, pior, é humanamente impossível alguém enxergar qualquer coisa nessa distância.
Otacílio ouviu atentamente as observações de Petrônio, soltou uma gargalhada ainda mais gostosa de quando encontrou Munir Mohamad, e disse:
       - É, pelo visto o vosmecê duvidou. Isso têm sentido, mas sou um homem de palavra. Jamais proporia algo que não cumprisse. Façamos o seguinte, vou disparar a flecha, em seguida nós saímos até o local com nossos cavalos, então o senhor tirará suas conclusões, pois não sou homem de duas conversas. Pelos meus cálculos em cinco dias chegaremos lá num bom galope. Mas tem um detalhe: quero algumas moedas, pois mereço!
- Certo – respondeu Petrônio – mas tem um detalhe nessa história: em cinco dias o falcão estará fedendo e os corvos terão comido sua carniça. Eu não posso arriscar e dar com os burros n'água.
- Por mil e seiscentos diabos!!! Onde já se viu um corvo voar tão alto?!!! O cinamomo está no topo de um penhasco furando as nuvens, explicou Otacílio. Se algum bicho o devorar restarão a flechas e os ossos para comprovar o meu feito.
- Sim, e como terei certeza se serão os ossos do falcão? Como saberei se a flecha que estiver lá é a mesma que está no vosso arco agora?
- É muito simples, pegue a vossa flecha e faça uma marca com o vosso punhal, daí comprovaremos.
Nesse exato momento, Munir Mohamad os interrompeu:
- Cavaleiro Petrônio, até parece que não me conheces. Por acaso não vos recorda que sou mais veloz que um raio? Não vos preocupeis, faço questão de buscar o tal falcão. Sou capaz de chegar lá primeiro que a flecha.
Sem que Petrônio tivesse tempo de responder, Otacílio teve um rompante:
- Que diabo é isso?!!! Onde já se viu um ser humano chegar mais rápido que uma flecha?!!!
Dessa vez quem Petrônio o interrompeu:
- É aí que o cavaleiro se engana. Estamos diante de um fenômeno. É tão fantástico que eu não estava relacionando a sua proeza aos fatos. Esse homem se chama Munir Mohamad, ele é mais veloz que raios, flechas, coriscos, trovões, meteoros e cometas. É um cavaleiro tão de palavra quanto ao senhor. E se ele chega primeiro que a flecha, para que gastarmos tanto tempo galopando mil quilômetros?
Otacílio continuou sem acreditar, mas silenciou a sua opinião. Então perguntou:
- Posso disparar a flecha? Meu arco está no pronto.
- Por certo que sim! Responderam em coro Petrônio e Munir Mohamad. E mal fecharam a boca, ouviram um zumbido que doeu nos ouvidos. Quando olharam para os lados, Munir Mohamad havia desaparecido como num passe de mágica. O zumbido, na verdade, fora provocado pela velocidade de sua disparada. O arqueiro ficou tão surpreso que o sangue fugiu de sua face. Então Petrônio perguntou:
- Em quanto tempo a flecha atingirá o alvo?
- Pelos meus cálculos matemáticos e cosmológicos, em um minuto ela estará atravessada no pescoço do bicho.
Eles jamais imaginavam que enquanto conversavam Munir Mohamad já se encontrava diante do cinamomo. Para não assustar o falcão e tirá-lo da mira, escondeu-se atrás de uma árvore. Mas eis que se passaram dez segundos e a flecha não atingia o pássaro. Então ele chispou ao encontro dela, alcançou-a em pleno voo, pegou-a e disparou-se como um raio com destino a ave, fincando-lhe a flecha no peito. Em dez segundos e dois milésimos lá estava ele junto a Petrônio e Otacílio. O falcão ainda agonizava. Perplexo, Otacílio desmaiou.
- É! Nem todo mundo suporta algo tão extraordinário – justificou Petrônio. Ele calculou que a flecha chegaria em um minuto, eis que foi e voltou em muito menos. É inacreditável!
Imediatamente acudiram Otacílio, derramando sobre ele um odre de água fria seguido de uma sucessão de piparotes e tapas nas bochechas, tão fortes que estalaram, assustando os pássaros empoleirados num velho salgueiro.
- Onde estou? O que diabo aconteceu? Quem morreu?
- Ninguém morreu, só o falcão. Está lembrado do que fazíamos? perguntou Petrônio.
- Sim, mas como foi isso? Como pode? Esse homem é mais rápido do que um raio! Como conseguiu ir e voltar em menos de um minuto?
- Deixa-me explicar – observou Munir Mohamad – assim que cheguei ao cinamomo, fiquei esperando a flecha atingir o falcão, mas como ela demorava muito, não tive paciência. Fui ao encontro dela, peguei-a, alcancei o falcão e o flechei.
- Por mil demônios! Isso mais parece uma história de Trancoso!
- Munir Mohamad corrigiu-o:
- Chamas muito pelo inimigo. Cuidado, pois podes queimar no mármore do inferno! 
E Otacílio objetivou:
- Lá vens com vossas mitologias!
Então, Petrônio brincou:
- Que flecha preguiçosa! Bom, tudo deu certo e está esclarecido. Estou muito surpreso, mas não sou dado a desmaios. O cavaleiro também possui um talento inacreditável e talvez nem se dê conta. Creio que nunca lhe deram o devido reconhecimento. Vossa visão é extraordinária e vosso arco parece mágico!
- E creio ser merecedor de alguma moeda, não é verdade? Sou um aventureiro cuja riqueza é o que trago no corpo – lastimou Otacílio.
- Sim, claro! A propósito, tenho uma proposta a fazer-lhe. Percebo que o cavaleiro é um homem bom. Eu também ando pelo mundo, mas sou iniciante nesse empreendimento. Vosmecê seria uma companhia muito boa para mim. Quer se juntar a nós nessa viagem? Prometo que nada lhe faltará.
Otacílio ouviu com bastante atenção, olhou para um lado, olhou para outro e falou:
- É, também percebo que estou diante de dois grandes cavaleiros, e muito me honrará acompanhá-lo como escudeiro. Aceito o convite.
E lá se foram os três. Após vencerem muitos quilômetros pincelados de belas paisagens, sinfonias de pássaros e, de vez em quando, sustos promovidos por bandos de animais silvestres irrompidos das moitas, deram-se numa clareira com meia dúzia de choupanas e uma estalagem. A tarde estava adiantada, portanto ali mesmo jantaram e pernoitaram.
A manhã raiou em claro fulgor, e antes de o sol despontar no horizonte perceberam que o estalajadeiro possuía muitos animais de porte, então Petrônio presenteou Otacílio com uma imponente égua tordilha de excelente trote. Munir Mohamad preferiu continuar a pé, alegando sentir-se melhor e mais confortável com sua ligeireza própria. Antes de partir, o dono da pousada os presenteou com três grandes peças de queijo. Petrônio perguntou-lhe sobre o próximo reino. Antes que ele respondesse, Munir Mohamad interrompeu a conversa:
- Meu nobre Petrônio parece não estar familiarizado com vossos próprios companheiros. Eu já não havia dito que conheço os quatro cantos do mundo? Pois saiba que o próximo reino é o do rei Hemengardo.
Petrônio ficou surpreso e disse:
- Ah! É mesmo. Eu nem lembrava que estou acompanhado de um homem viajado.
E Munir Mohamad complementou:
- Inclusive eu já ouvi o burburinho de que se trata de um rei estúpido. Seu reino chama-se Montes Verdes.
- É verdade - reforçou o estalajadeiro - é um reino muito próspero, mas conduzido por um homem mau – mas diga-me uma coisa, cavaleiro Petrônio, de onde vens?
- Sou da aldeia de Santo Isidoro.
- Bem, então ficou fácil. O senhor já galopou três mil quilômetros e se encontra na metade do caminho. Faltam mais três mil quilômetros.

O CAVALEIRO JACÓ YONÁ

E lá se foram os três cavaleiros rasgando a selva. Após quase um dia de viagem, passavam por uma gigantesca árvore milenar, cujas raízes pareciam monstruosas serpentes. De repente, ouviram um choro triste, seguido de suspiros e soluços ressentidos, como faz uma criança que lhe tenham roubado o doce. Então Otacílio disse:
- Isso me parece um malassombro. Que choro agoniado!
Petrônio, muito destemido, sentenciou:
- Tudo é malassombro até a gente não desvendá-lo.
- Isso é o que vosmecê pensa, justificou Otacílio. Meu avô contava que certa vez fazia uma viagem pelas florestas do lado oriental. Era noitinha quando ele passou numa paragem onde haviam alguns moradores. Ao se distanciar do povoado viu uma mulher vestida de branco, a qual pediu-lhe que a ajudasse chegar à aldeia próxima, mas que não tinha como pagá-lo. Como ele era um homem piedoso, autorizou que ela subisse na parte traseira da carruagem. A mulher trazia o rosto envolto numa espécie de véu, impedindo que se pudesse vê-lo. Então o meu avô seguiu viagem no mais absoluto silêncio, pois ela não disse mais uma palavra. Num determinado trecho da estrada havia um cemitério abandonado. Contavam os mais velhos que o local teria pertencido a um reino, cuja família real havia sido dizimada numa batalha. Quando eles passavam defronte ao cemitério a mulher pediu para ele parar e desceu logo em seguida, fazendo-lhe uma demorada reverência. Em seguida ela correu até o portão do campo santo. Meu avô perguntou se ela morava por perto, então a mulher respondeu “não, meu bom cavaleiro, eu moro aqui, sou a rainha Lucrécia; morri há duzentos anos varada por uma espada”. E, tirando o véu deixou visível o seu rosto de caveira. Meu avô, aterrorizado, percebeu que falava com uma morta. Naquele exato momento ele sacudiu desesperadamente as rédeas dos animais e saiu dali sem fala. Nunca mais quis passar no local!
Petrônio ouviu atentamente a história e disse:
- Vamos apear e ver que malassombro é esse. Quem sabe é o rei marido da rainha Lucrécia. Quem chora, chora por alguma coisa.
Os três cavaleiros desceram e foram ao encontro da lamúria. Logo depararam-se com um casebre aos pedaços, em cujo alpendre um homenzinho de cócoras enfiava o rosto entre as pernas, enfurnado entre duas enormes raízes que empurravam a construção. Ele não aparentou incomodado com os viajantes, pois sequer se virou para olhá-los.
Era uma figura esquisita, corpinho arqueado e seco, homenzinho de seis pés de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça que mais lembrava uma abóbora chata, testa quase inexistente, olhos fundos, miúdos e descabelado; nariz de feição duvidosa, boca chocha e inexpressiva, gestos vulgares, bigodinho fino como graveto, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas, contava com uma cabeleira, ruiva, apenas sobre as orelhas. Ele trazia ao pescoço uma tira de couro onde estava presa a estrela de Davi. E assim que ele levantou as pálpebras, Petrônio perguntou:
- Boa tarde, cavaleiro! Podemos ajudá-lo? Por que choras tanto? Vosmecê está doente ou perdido?
E muito naturalmente o homenzinho respondeu:
- Não, cavaleiros! dizem que as leis da caça por aqui são rigorosas. O rei manda cortar a cabeça dos plebeus flagrados nesse ofício. Só aos nobres é permitida essa delícia. Contam que o exercício da caça é mais importante para reis e príncipes do que qualquer outro, pois a caça é a imagem da guerra, implicando astúcias e insídias para vencer o inimigo. Alguns, de tão estúpidos, caçam apenas para treinar suas aptidões em caso de guerra, deixando os animais abatidos à espera de corvos para o repasto. Como não sou um desses corvos, trago as tripas vazias e minha barriga ronca mais que mil trovões.
Bastou falar a palavra "trovões", os céus trovejaram assustadoramente, e Munir Mohamad foi logo dizendo:
- Pelas barbas do profeta! Vai chover forte. Precisamos montar um abrigo...
- Não! Não! Não é trovão - interrompeu o homenzinho - é só o meu estômago, ou melhor, minhas tripas remoendo... roncando... batendo como um sino rachado...
- O quê?!!! São suas tripas? Surpreenderam-se em coro os três cavaleiros, afinal o som era assustador.
- Sim – respondeu – é para os cavaleiros terem ideia do tamanho da minha fome.
- Mas o cavaleiro está sem comida? Perguntou Petrônio.
- Sim, sou um pobre viajante sem eira nem beira nem beirais.  A pobreza é mãe da diligência, e a invenção da arte deve sua origem à fome, como bem dizia o meu pai. Por isso passo longe da arte de pegar o alheio. Ando por esse mundo de Deus, contemplando o desconhecido. O que eu tinha era apenas cinco quilos de linguiça e três quilos de farinha de trigo, mas fiz uma papa e comi-a toda há duas horas.
- Por mil diabos! Exclamou Otacílio – comeste há duas horas e já estás faminto?!!! Nunca vi alguém sentir fome em tão pouco tempo.
- Pois está vendo agora. Muito prazer, sou Jacó Yoná, seu escravo! E por falar nisso, os cavaleiros não têm alguma comidinha aí?
- Meu pai costumava brincar com alguns trabalhadores dizendo “para trabalhar é uma criança, mas para comer é um esmeril da França” – explicou Petrônio.
- Sim, meu pai também dizia “para trabalhar é um lolô, mas para comer é um estopor”, complementou o homenzinho esquisito.
- Muito cabível o refrão do vosso pai. Só espero que o vosso proceder não se coadune inteiramente com a frase – ironizou Otacílio.
- Claro... claro... como falei, meu defeito é essa forte inspiração para comidas – consertou a esdrúxula figura.
Todos se entreolharam, admirados. Petrônio pegou os três queijos que havia ganhado do estalajadeiro e ofereceu-os a ele. Cada peça tinha cinco quilos, portanto achou que seriam suficientes para alimentá-lo durante alguns dias. Mas eis que ouviu o seguinte rompante:
- Pela cabeça calva de Abraão!!! Só isso?!!
E enquanto virou as costas para fechar o farnel, o homenzinho consumiu tudo tal qual uma forrageira. A cena causou espanto aos cavaleiros, mas antes que dissessem algo o homenzinho esquisito foi logo explicando:
- Queiram desculpar-me cavaleiros, eu não sou glutão, apenas como mais que as outras pessoas. Muito agradecido pelos queijos. Tirando isso sou igual a vosmecês. Não tenho irmãos, nem pai, nem mãe. Vivo por esse mundo de Deus lutando pela vida, sem ser visto por ninguém. Meu pai dizia que um homem só vale por aquilo que tem. Noto que vosmecês são pessoas boas e me apetece acompanhá-los.
Muito compadecido Petrônio continuou:
- Obrigado! Disse Petrônio – é... já que o senhor não tem ninguém na vida, quero fazer-lhe um convite. Percebo que és um bom homem. Eu também sou um cavaleiro andante, mas iniciante. Vosmecê seria uma companhia boa. Quer juntar-se a nós? Prometo-lhe que nada lhe faltará.
- É pra já! Respondeu num rompante o homenzinho - sou Jacó Yoná, seu servo! Como dizia meu pai: “Junta-te aos bons que serás um deles”.

O CAVALEIRO JOSÉ MANSUETO

E após os devidos cumprimentos, seguiram floresta adentro. Viajaram até o entardecer e passaram por uma planície. O caminho se aprofundava na mata sem qualquer sinal de pisadas ou cavalgaduras recentes.  Logo deram conta de mais um riacho, cuja aproximação era perigosa devido aos charcos permeados de atoleiros e troncos, para onde desembocavam os regatos.  Num dado momento uma grande serpente irrompeu de um arbusto, desaparecendo na mata. O imprevisto assustou o cavalo que conduzia Jacó Yoná, cujo movimento súbito o jogou sobre uns galhos secos, ferindo-o no braço. Imediatamente Petrônio lavou o local, macerou raiz de barbatimão, azeite e teia de aranha num almofariz de madeira e cobriu a ferida. Logo tudo estava bem, afinal a ferida fora mínima.
Findado esse trecho, depararam-se com uma clareira na qual se descortinou uma cena esdrúxula, que precisa ser bem explicada ao leitor. Era literalmente o traseiro de um homem envolto numa moita de alecrim. O desconhecido estava com as orelhas plantadas no chão. Como não podia ser diferente, estranharam a cena, mas aproximaram-se lentamente, cumprimentando o indivíduo. Mal disseram "boa tarde", o homem colocou o seu dedo indicador nos lábios e sussurrou:
- Psiu!!!
Os cavaleiros pararam, admirados, silenciando-se. O homem fez gestos dando a entender que explicaria logo em seguida, até porque não é comum deparar-se com uma pessoa no meio do mato, com a cabeça no chão e nádegas para o céu. E passados uns cinco minutos ele se levantou. Então Petrônio perguntou:
- Estás perdido, cavaleiro?
- Não – respondeu ele – Sou muito apegado a São Juliano, protetor dos viajantes. Não sei se vosmecê é cristão, mas é ele que me guia quando me encontro confuso nas encruzilhadas e bifurcações dessas matas sem fim.
- Os cavaleiros me desculpem, mas estou ouvindo missa em Roma, celebrada pelo papa, por isso fico muito concentrado; não gosto de perder uma palavra...
Sem que ele concluísse, os quatro cavaleiros exclamaram em coro:
- Missa em Roma!!! Como assim?!!
- É o que ouviram. Estou ouvindo uma missa em latim, celebrada pelo santo papa nesse exato momento em Roma.
- O quê? Missa em latim?!! Que história é essa? Como alguém consegue ouvir uma missa celebrada tão longe? Perguntou Petrônio. De repente o estranho homem fez novamente sinal com o dedo indicador e colocou as orelhas no chão. Todos calaram-se.
Passados alguns segundo ele explicou:
- Os cavaleiros me desculpem novamente, mas é que estava na hora do "Padre Nosso", e eu não gosto de perdê-lo. Meu nome é José Mansueto. Sou um cavaleiro andante. Não gosto de perder os grandes acontecimentos do mundo, por isso costumo parar de vez em quando para ouvi-los. É a maneira que tenho para espairecer no meio da solidão dessas florestas e ficar sabendo coisas que só eu tenho conhecimento.
- Oh! Que interessante! Pelo que percebo o cavaleiro possui uma audição extraordinária – disse Petrônio.
Os quatro amigos, aparentemente incrédulos, permaneceram olhando o prodigioso cavaleiro. Na realidade, não era puramente uma incredulidade, afinal três deles próprios davam testemunhos de prodígios. Foi então que o cavaleiro de Santo Isidoro teve uma ideia. Perguntou a Mansueto se era possível ele repetir o "Padre Nosso" enquanto o papa o rezava. Petrônio conhecia a oração que lhe foi ensinada por seu pai. Desse modo poderia conferir a informação. Mas eis que Mansueto foi logo dizendo:
- Silêncio! O papa Hugolino Horácius Fabrícius Primeiro vai iniciar o "Padre Nosso"; os cavaleiros podem acompanhar-me na oração? Logo o papa iniciou a reza:
- Pater noster, qui es in caelis...
E Mansueto repetiu:
- Pater noster, qui es in caelis...
E os cavaleiros repetiram:
- Pater noster, qui es in caelis...
E o Papa disse:
- Sanctificétur nomen tuum...
E Mansueto repetiu:
- Sanctificétur nomen tuum...
E os cavaleiros repetiram:
- Sanctificétur nomen tuum...
E o Papa disse:
- Advéniat regnun tuum...
E Mansueto repetiu:
- Advéniat regnun tuum...
E os cavaleiros repetiram:
- Advéniat regnun tuum...
E o Papa disse:
- Fiat voluntas tua...
E Mansueto repeti:
- Fiat voluntas tua...
E os cavaleiros repetiram:
- Fiat voluntas tua...
E o Papa disse:
- Sicut in caelo et in terra...
E Mansueto repetiu:
- Sicut in caelo et in terra...
E os cavaleiros repetiram:
- Sicut in caelo et in terra...
E o Papa disse:
- Panem nostrum cotidiánum da nobis hódie...
E Mansueto repetiu:
- Panem nostrum cotidiánum da nobis hódie...
E os cavaleiros repetiram:
- Panem nostrum cotidiánum da nobis hódie...
E o Papa disse:
- Et dimitte nobis débita nostra...
E Mansueto repetiu:
- Et dimitte nobis débita nostra...
E os cavaleiros repetiram:
- Et dimitte nobis débita nostra...
E o Papa disse:
- Sicuti et nos demíttimus debitóribus nostris...
E Mansueto repetiu:
- Sicuti et nos demíttimus debitóribus nostris...
E os cavaleiros repetiram:
- Sicuti et nos demíttimus debitóribus nostris...
E o Papa disse:
- Et ne nos indúcas in tentationem...
E Mansueto repetiu:
- Et ne nos indúcas in tentationem...
E os cavaleiros repetiram:
- Et ne nos indúcas in tentatione...
E o Papa disse:
- Sed líbera nos a malo...
E Mansueto repetiu:
- Sed líbera nos a malo...
E os cavaleiros repetiram:
- Sed líbera nos a malo...
E o Papa diss:
- Amen!
E Mansueto repetiu:
- Amen!
E os cavaleiros repetiram:
- Amen!
Encerrando a oração, Otacílio disse, admirado:
- Urra! Rezei em latim! Rezei em latim! Agora sei falar na língua dos estrangeiros!!! Sou um homem importante! Os demais cavaleiros rasgaram uma longa gargalhada. Na realidade, antes que Petrônio ouvisse a oração, sabia que Mansueto não mentia quando o ouviu dizer o nome do papa.
Naquela época poucos sabiam o nome do Sumo Pontífice, pois as informações rastejavam como lesmas. Os meios de comunicação davam-se através do boca-a-boca, no compasso do trote dos cavalos e no singrar dos navios. Então ele disse aos três companheiros de viagem:
- Está explicado porque ele mal nos deu atenção quando o encontramos naquela posição estranha. Ele ouvia o que falávamos muito antes de o abordarmos. Sabia que não lhe faríamos mal. Como não queria ser incomodado em sua missa, ignorou-nos.
- Exatamente, confirmou Otacílio. Se fosse eu tinha dado um pinote dos diabos e desaparecido na mata, afinal andar nessa selva é estar propenso a todos os perigos.
- Bom, mas precisamos seguir viagem. O véu da noite já nos sombreia. Daqui a aproximadamente duas horas montamos acampamento. Só tem um detalhe, senhor Mansueto, a propósito tenho uma proposta a fazer-lhe. Tenho observado que és um bom homem. Eu também sou um cavaleiro andante, mas iniciante. Vosmecê seria uma companhia muito boa para nós. Quer se juntar a nós? Prometo-lhe que nada lhe faltará.
Enquanto Petrônio falava, Mansueto o observava com bastante atenção. Então respondeu:
- É um prazer receber o convite do nobre cavaleiro. Eu já sabia que todos vosmecês eram pessoas boas antes mesmo de conhecê-los, pois ouvia as vossas boas conversas muito antes de me encontrarem. Para mim é muito providencial juntar-me a vosmecês, pois sou um cavaleiro solitário. De agora em diante seremos mais fortes, pois estaremos juntos, com a benção de Deus e da Virgem Maria. Eu aceito acompanhá-los. Vamos para frente até que cada um encontre o seu verdadeiro destino e faça vida em algum lugar.

O TESOURO

E mais uma vez encetaram marcha, desaparecendo na floresta. Após três horas deram-se com uma taberna, cujo proprietário encarregou-se de desencilhar os cavalos e acomodá-los num cercado. Ali conheceram um prior que, pela quantidade de bilhas vazias, parecia amar mais o vinho e o festejo que o confessionário e a Bíblia. Ele trazia no dedo um belo anel com sinete de ouro maciço, assinalando os seus supostos brios eclesiásticos; seus dedos estavam pesados de pedras preciosas, as sandálias eram do mais fino couro de Andaluzia; trazia na cabeça um barrete vermelho, ricamente bordado. O sacerdote ria e alegrava os convivas, os quais pareciam tê-lo como um rei. Então José Mansueto sentenciou:
- Tudo nele lembra um padre, menos as atitudes e a prática contrária ao cânon.
Imediatamente Jacó Yoná o corrigiu, dizendo-lhe:
- Na comédia é como na vida, ao fim de uma e de outra, a morte nos tira as roupas e vamos todos iguais para a cova. A cova que cabe o padre, cabe o teu corpo. No final tudo é igual. Veja que todos o tem como um deus, portanto não o condenes para não seres apedrejado. Lembre que em terra de sapo, de cócoras com eles.
 Depois de terem apreciado moderadamente alguma bebida, foram dormir ao estalo da fogueira. Era assim o cotidiano deles e de todos os que se aventuravam nas matas. O único barulho na madrugada, além do crepitar do fogo, ficava a cargo das corujas piando de quando em vez, rivalizando com os uivos chorosos das matilhas de lobos. Como era de costume, antes de dormir ficavam conversando até o sono aparecer. Como os lobos estavam muito eufóricos naquela noite, Petrônio disse-lhes:
- Certa vez minha avó Regina contou-me que, numa noite exatamente igual a essa, um homem chamado Niceros foi a uma cidade denominada Cápua, onde venderia adagas e armaduras. Esse indivíduo era muito conhecido nessa aldeia por manter um comportamento esquisito, inclusive sair pela floresta solitariamente em noite de lua cheia. Nesse mesmo local existia um homem muito corajoso, chamado Terêncio, o qual tinha curiosidade de saber o motivo daquele estranho empreendimento. Ele conseguiu persuadir um amigo a seguir às escondidas o tal homem numa dessas noites. Assim descobririam o que ele realmente fazia. Para Terêncio o homem estranho escondia alguma coisa enterrada. Então se puseram, a caminho ao primeiro cantar do galo. A lua reluzia deixando a paisagem como dia amanhecendo, exigindo cautela para não serem percebidos.
Após boa caminhada, acharam-se num cemitério em ruínas. De repente o tal Niceros passou a conjurar os astros, em seguida começou a retirar as próprias roupas de maneira agoniada, deitando-as à beira da estrada. Apesar de toda coragem, os dois vigilantes tremiam como vara verde. Logo o indivíduo pôs-se a urinar ao redor de suas roupas, e no mesmo instante se transformou num lobo -, enquanto Petrônio narrava a horripilante história, era possível ver os olhos aboticados de Jacó Yoná, os quais refletiam o prateado da lua.
O aspecto sombrio daquela noite embalada por uivos de lobos deu uma originalidade assustadora ao conto. Então, Petrônio continuou a história: após ele ter se transformado em lobo, começou a uivar e sumiu na floresta, permitindo que os dois acompanhantes secretos fossem checar suas roupas. Mas qual foi a surpresa: as peças estavam transformadas em pedras. Os dois amigos ficaram tremendamente assustados. Um deles desembainhou a espada e fendeu o ar com toda fúria, para afastar os maus espíritos ao longo do caminho até chegar à casa de uma donzela, enamorada de um deles. Ambos viam o suor frio escorrendo em seus corpos, encharcando suas roupas. A aldeã não escondeu o espanto de vê-los chegando àquela hora tão adiantada, e foi logo dizendo-lhes: se tivessem chegado mais cedo teriam me prestado uma grande ajuda. Um lobo horroroso invadiu o cercado e matou todos os meus porcos. Ele só não matou a mim porque um vizinho atravessou uma lança em seu pescoço.
E como o sol já estava raiando, os dois amigos retornaram para a casa onde moravam. Mas ao passar pelo cemitério onde o homem estranho deixara as roupas transformadas em pedras, encontraram uma poça de sangue. Eles ficaram estarrecidos e correram para a casa onde Niceros morava. Ali se depararam com ele todo ensanguentado. No seu pescoço havia um buraco, então foi reconhecido como lobisomem.
A notícia se espalhou por todos os lugares. A população veio em peso, munida com toda espécie de armas. Mas assim que abriram a porta não havia mais nada, apenas algumas marcas de sangue. Nunca mais Niceros foi encontrado. Essa foi a história contada por minha avó Regina. Por muitas e muitas noites dormi amedrontado após tantas e tantas histórias desse tipo. Ela escolhia as noites de lua cheia para narrá-las, assim dormíamos morrendo de medo.
Já havia passado meia hora que Petrônio narrara a história. Apenas ele e Mansueto conversavam sonolentos. De repente Mansueto fez sinal de "psiu". Petrônio calou-se. Após alguns minutos de absoluto silêncio, Mansueto sussurrou:
- Jesus Cristo! São ladrões!
Meio desconfiado Petrônio indagou-lhe, baixinho:
- O que está havendo?
- Estou ouvindo três ladrões conversando. Pelos meus cálculos, estão acampados a trezentos quilômetros daqui. De acordo com as conversas, eles enterram um baú repleto de ouro e joias no tronco de uma árvore. No meio do tesouro, há uma coroa de uns três quilos de ouro puro, cravejada de diamantes, esmeraldas e outras pedras preciosas. Se eu não ouvi errado, a coroa é de um tal rei por nome de Brunhildo Tibúrcius de Montecarlo, do reino de Carvalhaes. Eles estão deixando o local e tomaram o rumo norte.
Nesse exato momento, Petrônio acordou Otacílio, explicou-lhe o que se passava e que tudo o que se sabia até ali fora por via da audição de Mansueto. Então pediu-lhe que tentasse visualizar e memorizar o local exato da árvore.
- Consigo vê-lo claramente – observou Otacílio – é o único pé de carvalho seco dali, inclusive eles foram espertos, não colocaram pedra nem graveto para marcar. É estratégia, pois tais sinais atraem outros ladrões.
- Bom, o local está demarcado. Nem se preocupem. Vamos dormir, amanhã resolveremos isso. Precisamos recuperar esse tesouro para devolvermos ao dono, explicou Petrônio.
Minutos depois a madrugada foi tomada por um quinteto de roncos que se alternavam com os pios dos caborés. Aos primeiros raios cabelos do sol uma alvorada de pássaros fez revoada nas matas. Os companheiros acordaram, fizeram a refeição e partiram.
No transcorrer da viagem, contaram o episódio da noite seguinte a Munir Mohamad e Jacó Yoná, que até então dormiam. Os dois ficaram surpresos. E como o destino deles era diferente do destino dos ladrões, Munir Mohamad bravejou:
- Malditos ladrões!!! Se escaparem de ter as mãos cortadas, que queimem no mármore do inferno! Cavaleiro Petrônio, eu tenho uma sugestão muito boa, vosmecê aceita:
- Fale-a, cavaleiro Mohamad. Fique à vontade!
- É o seguinte, eu posso ir sozinho buscar o tesouro enterrado. Se acaso formos a cavalo levaremos um dia inteiro e ainda sairíamos da nossa rota. Mas se eu for buscá-lo, gasto apenas alguns segundos e não deixo pegadas.
- Que ideia brilhante! Pois o amigo tem a minha autorização, mas me explique como conseguirá trazer um baú cheio de ouro na cabeça? Pelos relatos de Otacílio é muito pesado. Em quanto tempo consegue fazer a viagem de ida e volta?
Enquanto Petrônio fazia a pergunta a Munir Mohamad, Otacílio sussurrou no ouvido de Jacó Yoná:
- Será que isso não é uma cilada? Indo sozinho ele pode desaparecer com o tesouro, e quem irá encontrá-lo com essa velocidade toda? É melhor eu preparar o meu arco. Qualquer coisa eu aciono a flecha e o atinjo lá mesmo!
O pobre Jacó Yoná, que até então desconhecia os prodígios de Otacílio, fitou-o com cara de bobo, sem entender nada. Nesse interim Munir Mohamad respondeu:
- É o seguinte, cavaleiro Petrônio, no episódio do falcão eu percorri dois mil quilômetros mais oitocentos quilômetros para retornar e pegar a flecha em curso. Somando tudo dá três mil e seiscentos quilômetros. Eu gastei um minuto no total. Mas para esse caso temos só trezentos quilômetros. Entre ir desenterrar e retornar eu gasto dois segundos e meio por causa do peso do metal, o qual é incomparável ao peso do falcão. Se eu chegar lá e perceber que o volume é grande, posso fazer em duas viagens que dobraria o tempo, é só levar um saco. No total gastaria cinco segundos.
Enquanto Munir Mohamad explicava, Jacó Yoná ouvia admirado, sem entender uma vírgula. Para ele, Munir Mohamad estava ficando louco, então perguntou baixinho no ouvido de Otacílio, que explicou-lhe os prodígios de todos, deixando-o maravilhado. E mal deu um passo, soou um tinido estridente que doeu os ouvidos de todos. Era Munir Mohamad que havia disparado rumo ao tesouro.
- Que disparo foi esse?!!! Perguntou Jacó Yoná.
- É Munir Mohamad, fazendo o que acabei de vos explicar – respondeu Otacílio. E enquanto falava armou o arco e ficou atento se o companheiro realmente tomaria o destino certo ao retornar. Mas mal aprumou o arco, Munir Mohamad apareceu de volta com a metade do tesouro.
- Aqui está a primeira parte, cavaleiro Petrônio.
Todos se entreolharam, perplexos. Então Petrônio abriu o saco e se deparou com uma riqueza nunca vista. A coroa do rei Brunhildo tinha uma beleza indescritível, fabricada em ouro maciço, cravejada com cinco mil diamantes, orlada por três mil pedras preciosas de diferentes tipos. Os cavaleiros se entreteram tanto com as peças que não perceberam que Munir Mohamad já havia disparado novamente para buscar a segunda parte. Mal piscaram os olhos quando ele retornou da segunda viagem com o outro baú. Havia cem cordões de ouro, mil brincos, quinhentas pulseiras, cem diademas cravejadas de esmeraldas, quinhentos anéis e oitenta braceletes. Tudo em ouro maciço, diamantes e pedras preciosas. Cada peça era confeccionada na mais fina ourivesaria. Havia quinhentas moedas de ouro maciço. Petrônio tentou decifrar a identificação, mas era uma inscrição estranha. Nada lembrava a escrita cuneiforme. Eram tantos objetos de ouro puro e tantas pedras preciosas que cada um dos homens exclamou algo:
- Jesus, Maria, José!!!
- Por Javé!!!
- Pelas barbas do profeta!!!
- Por mil demônios!!!
- Quanta riqueza!!!
Após conferirem tudo, Petrônio disse:
- É o seguinte, levaremos o tesouro conosco. Quando chegarmos ao reino de Montes Verdes nos informaremos sobre o caminho para o reino de Carvalhaes e devolveremos o tesouro ao rei. Mas tem uma coisa: ninguém pode saber disso, pois seremos alvos de salteadores, inclusive corremos o risco de sermos confundidos com os verdadeiros ladrões.

O REINO DE MONTES VERDES

Quando menos esperavam, o sol deitava os seus raios sobre a hospedaria. Eles prepararam a refeição e partiram. Munir Mohamad garantiu que no início da noite estariam no reino de Montes Verdes. No transcorrer dessa viagem todos se divertiram muito com as histórias hilárias contadas por Jacó Yoná. Impactado pelos prodígios dos amigos, ele parecia demorar a assimilar a experiência. Durante o caminho só falava em comida, divertindo a todos.
Embora viajassem com um tesouro de valor exorbitante, somado às moedas de ouro de Petrônio, agiam com descontração, confiando na audição de Mansueto. Sabiam que se um bando de salteadores estivesse nas proximidades, seria detectado, permitindo-lhes desviar a rota. Quando o sol estava quase se despedindo, um imenso castelo foi se descortinando diante deles. Enfim, estavam a poucos passos do reino de Montes Verdes, morada do estúpido rei Hemengardo. Dessa vez foi Petrônio que não se conteve de admirar a grandiosa construção.
As muralhas circundavam todo o castelo e tinham perto de dez metros de altura, reforçadas por torres dispostas a intervalos regulares. Protegido por um parapeito, corria ao longo das muralhas o caminho da ronda, que era percorrido pelos vigias que lá estavam aos montes. Os muros eram guarnecidos com pequenos parapeitos que lhe deram um aspecto denteado, chamados de ameias. Desse lugar se atiravam os projéteis contra os possíveis agressores, tendo-se visão panorâmica de tudo o que se espraiava até a linha do horizonte.
Um fosso cheio de água contornava a construção. Dentro tinham estacas fincadas para impedir o uso de possíveis embarcações de salteadores. O único meio de acesso era através de um corredor que cruzava as muralhas junto às torres principais. Em caso de perigo, o castelo contava com dupla proteção. Uma, a porta engradada de madeira e ferro, suspensa por cordas e que descia verticalmente barrando a entrada de possíveis invasores. Outra, a principal, era a ponte levadiça, constituída de um tablado que girava em torno de dois eixos presos às laterais do portão. A ponte se erguia contra o corredor, vedando-lhe o acesso, além de isolar o castelo, que ficava inteiramente emoldurado pelo fosso. A imponente construção era flanqueada por dezenas de torres e, a julgar pela quantidade de janelas, aparentava ser dividida em centenas de cômodos.
Como era costume, eles se dirigiram à Pretoria, repartição pública cujo objetivo era inscrever nos registros públicos os nomes dos forasteiros e seu lugar de origem. O crepúsculo já começava a chamar a noite. Após o cumprimento das obrigações, instalaram-se numa hospedaria, onde fizeram o repasto regado a muitas bilhas de vinho e causos para chamar o sono. Dormiram ansiosos para ver o sol nascer e poderem contemplar cada pedacinho do reino.
Assim que o sol rasgou o horizonte, eles deixaram a hospedaria cheios de curiosidade. Estavam ansiosos principalmente para conhecer o castelo que, de tão grandioso era chamado de Babilônia. Faziam o percurso por ruelas estreitas, nas quais se imprensavam sucessivas tendas perfiladas de uma ponta a outra. Alguns comercializavam comida, cuja refeição era feita ali mesmo. Havia todo tipo de mercadoria: ovelhas, cavalos, bezerros, leitões, galinhas, verduras, frutas, legumes, vasilhames de cobre e latão botijas, armaduras, elmos, selas, ferraduras, arreios, gibões, potes e canecas de cerâmica, enfim se encontrava de tudo no reino de Montes Verdes.
Os viajantes enchiam os olhos com a fartura de produtos e novidades. Jacó Yoná não tinha olhos para nada, exceto comida. Estava sempre reclamando sua fome desabalada, alegando não possuir um vintém furado. Petrônio do deixou à vontade para comer. A autorização foi o bastante para que em dois minutos uma tenda tivesse o estoque esvaziado por sua gula, assustando a vendeira. Os outros companheiros, como tinham comido recentemente, não quiseram nada e impressionaram-se com o apetite do amigo, o qual raspou o fundo das panelas.
Encerrado o turismo, adentraram numa área residencial, cujos sobrados de pedra ostentavam fachadas com pequenos jardins. Nesse trajeto impressionaram-se quando viram mais de cinquenta homens fortemente armados. De quando em vez sentiam-se observados por moradores desconfiados, certamente percebendo que eram forasteiros. Vez ou outra espremiam-se junto às paredes para dar passagem às carruagens e carroças, assim habituavam-se àquele trânsito fluente, de maneira que a cada estrugir de cascos e rodas, saltavam-se contra as fachadas.

A FILA DA MORTE

Ao virar uma esquina bifurcada, surpreenderam-se com uma fileira de homens que parecia não ter fim. Essa rua se encerrava nos fundos do castelo, cujos mesmos entravam um a um. Estavam os cinco cavaleiros andantes nesse reconhecimento de área quando um dos homens gritou:
- Alto aí, cavaleiros! Se quiserem concorrer, tratem de entrar na fila. Nada de passar na frente, pois muitos estão aqui há vários dias.
Sem entender o que se passava, restou-lhes olhar para o reclamante, cuja abordagem chamou a atenção e provocou um pequeno tumulto. Mas no mesmo instante Petrônio defendeu todos:
- Não se preocupe, cavaleiro. Não estamos entrando em fila alguma. Somos viajantes, apenas passamos pelo reino. Observe que estamos com os nossos cavalos. Queira desculpar-nos se interferimos em alguma coisa.
- Mas por que entraram justo por essa rua? Aqui só entra quem tem negócio com o rei Hemengardo... ou melhor, quem aceitou o desafio – explicou o homem.
Nesse instante, Jacó Yoná interrompeu:
- Por acaso essa fila é para receber comida? Se for, já quero entrar, pois estou morto de fome e sem um vintém no bolso nem na mala.
Seus companheiros menearam a cabeça, esconjurando a fome desabalada do amigo, então Otacílio perguntou:
- O companheiro Jacó Yoná já está com fome? Por acaso és um saco sem fundo?
- Senhores - interrompeu Petrônio - deixemos para outro momento a fome do nosso companheiro.
E dirigindo-se ao homem que os abordara, perguntou:
- O que os cavaleiros fazem na fila? Ao que me consta o rei Hemengardo é um homem estúpido, porém, se ele recebe as pessoas uma a uma em seu próprio castelo, parece mais um homem bom e atencioso com o seu povo.
- Não é nada disso -retrucou o homem - estamos aqui atrás de uma proposta irrecusável.
- Que proposta é essa? - indagou Petrônio.
- Ele oferece a própria filha em casamento. É a princesa Astrolábia, a donzela mais bela que se tem notícia entre todos os reinos da região. Estamos aqui para concorrer.
Mal ouviram a notícia, os quatro forasteiros disseram em coro:
- Lá vamos nós para a fila!!!
- Calma... calma! Não sejam precipitados – ponderou Petrônio – Vamos com cuidado!
- Logo Jacó Yoná interrompeu:
- O nobre amigo não autoriza pelo menos eu? Assim ficarei mais rico... quer... quer... dizer,  ficarei rico e nunca mais passarei fome.
Antes de Petrônio responder, o homem explicou:
- Se fosse assim não existiria essa fila. Dê uma olhada na outra fileira logo adiante. Daqui a pouco todos terão as cabeças cortadas na guilhotina.
Tais palavras soaram como um tiro de bombarda. E, num rompante, Petrônio perguntou:
- Que história troncha é essa? Parece de trás para frente. O cavaleiro poderia contá-la do começo?
- Claro! É o seguinte: o rei Hemengardo tem uma única filha por nome de Astrolábia. Ele a oferece em casamento e uma parte do seu tesouro ao cavaleiro que adivinhar o que ele guarda na torre mais alta do castelo. Essa notícia se espalhou de tal maneira que a cada instante chegam cavaleiros dos mais distantes reinos.
- Mas ele deu ao menos uma pista?
- Claro que não! Apenas disse que pode ser qualquer coisa: um osso de galinha, uma armadura, um caco de vidro, uma fruta seca, uma chave, um graveto, enfim não há limite para a imaginação do monarca. Ele só explicou que é algo simples e todos conhecem. E tem um detalhe: o cavaleiro que aceitar a condição tem três chances de arriscar palpite. Se na última chance errar, desce direto para a fila dos degolados. O local é cercado de guardas e há um dia para cada tentativa...
- Meu Deus! Interrompeu Otacílio – mas há alguma alternativa para fuga?
- Que nada! Veja quantos guardas há lá embaixo!
- Pai Abraão!!!! Quanta perversidade! Exclamou Jacó Yoná, olhando o cenário.
- Os cavaleiros não viram nada. Vosmecês estão vendo o vermelhão naquela baixada? É um rio de sangue dos degolados. Quem entra na fila passa a ser vigiado depois que se apresenta ao rei pela primeira vez. Há muitos guardas no início dessa rua justamente para conduzir os cavaleiros que se arriscam.
Diante daquela macabra explicação, Jacó Yoná o interrompeu:
- Oh, Jacó! Oh, todos vós, doze pais de nossa tribo! Só mesmo um demônio dessa espécie e desconhecedor das leis de Moisés para fazer tal maldade. Que as pragas do Egito caiam sobre ele. É melhor sairmos daqui, inclusive estou faminto. Não quero arriscar-me a morrer de barriga vazia. Minha mãe dizia que a pior coisa do mundo é morrer com fome.
- E a vossa mãe também tinha o vosso apetite? perguntou Munir Mohamad.
- Não! Claro que não! Não somos dessas pessoas dadas a gula. Mas, por falar em mãe, ela falava “em terra estranha a gente olha e ouve antes de pisá-la". Já meu pai dizia que “em terra de sapo, de cócoras com eles”. Aí está o nosso erro. Quando chegamos nesse reino devíamos ter nos informado sobre ele, assim teríamos sabido de tudo ali mesmo na hospedaria, e nem teríamos passado da Pretoria. Vamos dar o fora daqui, pois poderão pensar que estamos na fila.


O SURGIMENTO DE UMA PAIXÃO

E numa fração de segundos os cavaleiros andantes dispararam dali. Logo estavam no outro extremo do reino conversando sobre a estupidez do monarca. Como Jacó Yoná reclamava muito de fome, sempre dizendo que estava desprovido de dinheiro,  resolveram retornar à hospedaria. Ali ficaram sabendo das arbitrariedades do rei, inclusive se deram conta de pergaminhos espalhados nos muros e árvores com a proposta do rei, conforme contada pelo homem que conversaram na fila.
A noite caiu. O barulho diurno do vaivém de pessoas, carroças e carruagens – deu lugar a um silêncio absoluto, não fosse a orquestra de rãs e grilos que ecoava. O episódio da fila deixou-os tão abalados que o sono dissipou-se. Estavam inconformados com a estupidez do monarca.
- Santa Mãe de Deus!!! Como pode uma coisa dessas? Observou Mansueto - Quantos homens morrendo? Que poder é esse que tira vidas alheias por divertimento?
- É verdade! Complementou Petrônio – Já que ele faz por diversão, que ao menos poupasse as vidas das pessoas, mas matá-las?!! É abominável. Eu queria muito livrar esses cavaleiros da morte, mas há muitos guardas.
- É praticamente impossível – explicou Munir Mohamad.
- Mas nessa vida, meus amigos, tudo tem um preço. Infelizmente esse é o preço que os homens estão pagando pela escolha que fizeram. Eles estão na fila pelo interesse de se casar com a princesa e obter uma parte do tesouro do rei - se não entrassem na fila não estariam condenados à morte - opinou Mansueto.
- Eu que não sou louco de arriscar a minha vidinha. Minha avó Rebeca dizia que a vida é o nosso bem mais precioso. Eu prefiro a vida na fome, que a morte nela.
Após o filosofar esdrúxulo de Jacó Yoná, houve um estrondoso trovão que assustou a todos, com exceção a ele próprio que foi logo explicando:
- Não se assustem, já era para vosmecês saberem. São as minhas tripas remexendo, querendo uma ceiazinha antes de dormir.
Foi a deixa para que todos rissem muito. E, certamente relaxados pela diversão, embalaram num sono profundo.
No outro dia bem cedo foram apreciar novos ângulos do castelo. A porta principal era de toras de madeira nobre, fixada por placas de ferro. Uma coluna de madeira maciça, atravessada horizontalmente, fazia as vezes de ferrolho. Um plebeu contou-lhes que no alto das torres ficavam máquinas balísticas, bombardas, catapultas e as balestras lançadoras de pedras. Que havia, ainda, passagens secretas para impedir possíveis invasores. O castelo era muito bem equipado com estábulos, fornos, salas de armas, silos, capelas, quartos, salões, jardins e outros compartimentos. Tudo ali impressionava.
Estavam os cinco amigos perquirindo cada centímetro da majestosa fortaleza quando subitamente a princesa Astrolábia apresentou-se numa das torres, provocando admiração nos cavaleiros. Ela usava um diadema de ouro maciço, cujos diamantes reluziam tonalidades multicoloridas instigados pelos raios de sol. Sua beleza e delicadeza contrastavam com a monstruosidade que ocorria no reino.
Então, José Mansueto exclamou:
- Tenho plena convicção de não ter apreciado beleza tão transbordante desde o último Pentecoste. Por certo é uma princesa!
Justamente, era Astrolábia. Ela olhava distante como se contemplasse o horizonte e a natureza exuberante que se espraiava até os olhos a perderem de vista. Logo recolheu-se, sem jamais imaginar que despertou um sentimento muito forte no coração de Petrônio, o qual permaneceu vários minutos olhando para a janela. Em pensamento, implorava que ela retornasse.
A princesa não reapareceu, então restou-lhe chamar os companheiros para conhecer outros lugares do reino. Após passarem toda a tarde nessa perícia, retornaram à hospedaria, instigados pelos chamamentos de Jacó Yoná, sempre motivado pela fome, justificando ter se esquecido de trazer dinheiro.
Petrônio estava com o comportamento diferente, e isso foi percebido por todos. Logo após as refeições foram para o alpendre conversar e contemplar o céu estrelado. Otacílio lembrou-lhes do tesouro que traziam com eles, e que precisavam saber como chegar ao reino de Carvalhaes. Mansueto explicou-lhes que não se preocupassem, pois estava atento às conversas dos reinos vizinhos e logo poderia ouvir informações de como chegar lá. Desacostumados com o prodígio do amigo eles se desperceberam da sua audição extraordinária, a qual permitia-lhe ouvir conversas no mundo inteiro. Nesses conformes, poderia escutar algo sobre o rei Brunhildo e o reino de Carvalhaes.


PETRÕNIO ENTRA NA FILA DA MORTE

Enquanto conversavam, Petrônio permaneceu parado, admirando as constelações. Estava ensimesmado, completamente alheio às conversas dos amigos, os quais já apresentavam sonolência. Otacílio perguntou-lhe o motivo e todos se surpreenderam quando ele respondeu firmemente:
- Amanhã serei mais um na fila do rei Hemengardo.
- O quê?!! gritaram os amigos, espantando o sono para bem longe.
- Vosmecê não pode fazer isso, Petrônio. Sois um homem rico, não precisas do tesouro do rei - observou Otacílio.
- Não é pelo ouro, meus amigos, é pela princesa Astrolábia. Não consigo tirá-la do pensamento desde quando a vi naquela janela. Agora entendo a razão de tantos homens naquela fila - confessou Petrônio.
- Está explicado o vosso comportamento esquisito. Sua fisionomia mudou desde aquele momento. É um risco muito grande. Lembre-se do que disse aquele homem que encontramos na fila: não há limites para a imaginação do rei. É praticamente impossível alguém adivinhar o que há no alto da torre – explicou Otacílio.
- É verdade, mas estou decidido e vou tentar – sentenciou o apaixonado cavaleiro.
Na mesma hora Mansueto o interrompeu:
- Eu sendo vosmecê não o faria. Sabe-se lá se alguém já adivinhou e o rei ignorou. Ele pode alegar sempre que é outra coisa, e assim ninguém acerta. E tem um detalhe: temos em nossas mãos dois tesouros, um que desenterramos na floresta, outro que lhe pertence por herança. E se Deus o livre vosmecê morre?!!
- Justamente – concordou Petrônio – se me acontecer o pior vosmecês se encarregam de encontrar o reino de Carvalhaes e entregam a parte do rei Brunhildo. Depois retornam a Santo Isidoro e entregam ao meu pai Expedito o que me pertence. Lá contarão a ele a nossa história. Tenho convicção de que ele os recompensará, pois é um homem bom.
De repente, sem mais nem menos, Jacó Yoná interrompeu:
- Por Abraão! Logo agora que eu vinha comendo alguma coisinha a mais. O que será de mim, sem dinheiro, sem nada!
Todos riram, admirados com a única preocupação do glutão e por sua mente tão esquecida.
 - Ô homem faminto! Já tens comido tanto - censurou Otacílio.
- Não se preocupe Jacó Yoná, meu pai o acolherá também e nada lhe faltará. Deixarei uma carta de recomendação sobre a fidelidade de vosmecês. Mas sejamos otimistas, pois tudo vai dar certo!
- Vamos acabar com essa conversa. Já que estás decidido e ninguém consegue dissuadi-lo, que vá para fila. Ficaremos atentos, sondando cada cantinho do reino, inclusive se há possibilidade de fuga. Se na terceira tentativa vosmecê errar, colocaremos o plano em execução. Mas vamos torcer para que saias vitorioso. Sejamos otimistas - reforçou Mansueto. E a conversa encerrou-se aí. 


O PRIMEIRO ENCONTRO COM O REI

Naquela mesma madrugada Petrônio foi para a fila. Após três horas de espera ultrapassou os muros do castelo e deu-se com um jardim exuberante. No centro havia uma fonte com estatuária de anjos, querubins e personagens da realeza já falecidos. A fisionomia pura e serena da princesa Astrolábia somada à aura ingênua das esculturas celestiais contrastavam com a cena aterrorizante daqueles homens jovens indo para a fila dos degolados.
Durante a lenta caminhada, Petrônio perquiriu cada centímetro das intimidades do castelo tentando encontrar algo que pudesse ajudá-lo, mas nada se sobressaiu além de beleza e luxo. Logo viu-se diante de uma sequência aparentemente interminável de degraus. Era apavorante ver aqueles homens descendo para a guilhotina após a última e frustrada tentativa. Assim que venceu a escadaria viu-se diante do rei Hemengardo. Era corpulento, barbudo e ruivo. Seus olhos tinham a tonalidade esverdeada do mar. Aparentava uns cinquenta anos de idade. Usava coroa de ouro maciço cravejada de pedras preciosas e trajava roupas típicas de um monarca, como se estivesse numa importante solenidade. Quem sabe pensasse assim daquele acontecimento assustador.
Estava sentado num trono de madeira decorado em marchetaria e entalhes de guirlandas e pássaros folheados a ouro. O espaldar e os braços eram almofadados e forrados com veludo carmim. Petrônio estava frente a frente com o pai daquela que o fazia estar ali, arrastado pela força do amor. O jovem aventureiro fez a típica reverência ao monarca que foi logo dizendo:
- Bom dia, cavaleiro! Pelo que observo, sois um homem corajoso. Parabéns pela iniciativa.
O tom irônico do monarca não impediu Petrônio de olhá-lo firmemente, respondendo-lhe o cumprimento;
- Bom dia, alteza. Aqui estou para...
Nesse instante o rei o interrompeu:
- Ao cavaleiro não foi ensinado que não se deve chamar um rei de alteza? Eu poderia mandar cortar a vossa cabeça, pois não costumo ignorar afrontas dessa monta! Que disparate ouvir ofensa de um plebeu sem eira nem beira. Um rei se trata de majestade, aprenda isso!
- Mil perdões, majestade... mil perdões... interrompeu Petrônio – foi um equívoco da minha parte.
- Pois correste um grande risco. Se eu não fosse um bom rei resolveria isso de outra forma. Bem... mas diga-me o que há no alto da torre?
Sem pestanejar, Petrônio respondeu:
- Uma xícara, majestade.
- De porcelana ou faiança?
- Porcelana.
- Com desenhos de flores ou não?
- Com flores.
- Folheada a ouro ou não?
- Folheada.
- Branca ou azul?
- Branca.
- Tem pires ou não?
- Tem pires.
- Após o irritante interrogatório, o monarca deu uma demorada gargalhada e disse:
- Eu só estava brincando com vosmecê, meu rapaz. Não há xícara alguma lá no alto. Por certo o cavaleiro acha que eu proporia uma tarefa tão simples em troca do meu ouro? e como não bastasse oferecendo em casamento a minha filha a um forasteiro! Fica para amanhã. Eu o aguardo aqui. Ainda tens duas chances. Lembre-se de que não podes mais desistir.
Tais palavras, ditas num tom fortemente irônico, poderiam desmotivar Petrônio, mas aumentou-lhe a sua vontade de desafiar aquela criatura inconsequente, que se divertia com o sofrimento alheio. Era a primeira tentativa, mas adquiriu uma aura de obsessão.
Então o corajoso cavaleiro repetiu a reverência e retirou-se sob escolta até a hospedaria, de onde passou a ser vigiado. A partir daquele momento estava assinado o contrato com o soberano, no qual a sua vida passou a ter o mesmo valor dos outros homens, cujo sangue escorria como rio ladeira abaixo. Durante esse percurso, soube que todo o reino estava cercado por guardas. Era impossível fugir. Pelo menos parecia.
Assim que os guardas se retiraram, seus amigos o abordaram para saber como fora o encontro com o rei Hemengardo. Petrônio contou detalhadamente, deixando-os impressionados.
- Realmente estamos diante de um homem sanguinário, que se diverte de forma bizarra. Por que inventou tanta pergunta sobre xícara, se nem era xícara que tinha na torre? O nobre amigo não acha melhor tentarmos fugir? Podemos construir uma carruagem com fundo falso - sugeriu Munir Mohamad .
- Nada disso – discordou Petrônio - eu comecei e vou até o fim. Já falamos sobre isso.
- Concordo com Munir Mohamad  - disse Jacó Yoná - o que me preocupa é o risco. Justo agora, depois de nos tornarmos bons amigos incorremos a tal fatalidade. Penso que devemos procurar uma saída que não seja a sua cabeça rolando ladeira abaixo. Vamos colocar as nossas mentes para funcionar. Vosmecês que são mais sabidos, pensem algo.
Antes que Jacó Yoná concluísse, Mansueto o interrompeu:
- Companheiros, tenho uma ideia, encontrei uma maneira de ajudar Petrônio, e quem sabe livrá-lo da morte.
- Diga logo - gritou Munir Mohamad .
- Calma, é o que estou tentando fazer. É o seguinte, eu me fantasio de mendigo e vou para a frente do castelo tentar ouvir alguma coisa. Na realidade eu não disse a ninguém, mas desde que Petrônio foi para a fila, eu fui até o castelo e passei todo o tempo com o ouvido colado na parede. Sentei-me por ali e fingi estar aproveitando a sombra. Infelizmente não ouvi nada revelador.
Ouvindo tais palavras Petrônio teve um rompante:
- Meu Deus! Por que não pensei nisso antes. Que ideia maravilhosa! Faça o seguinte, corra para lá, pois não há mais como perder tempo. De agora em diante só vou para a fila no finalzinho da tarde, depois de vosmecê chegar quem sabe com a grande notícia.
Sem pestanejar, Mansueto disparou até o castelo e ficou por ali disfarçando, de orelha grudada na parede como se fosse um pedinte. Aquele final de dia os companheiros reservaram para jogar conversa fora até a boca da noite, quando o homem da audição prodigiosa retornou. Porém, a julgar por sua fisionomia, as notícias não eram boas, então ele foi logo dizendo: 
- Queira perdoar-me, nobre amigo. Passei todas essas horas a ouvir as mais variadas conversas dentro do castelo, mas nada que revelasse o que há na torre. Vou fazer a minha refeição e retornar em cima do rasto. Só retorno dali amanhã à tardinha, quando vosmecê estiver saindo para a nova empreitada. Vou encher o meu alforje de comida, assim terei do que me alimentar durante o dia.
- Acalme o seu coração, Mansueto. Vosmecê fez o que lhe é possível. Não se preocupe, pois ainda tenho amanhã e depois. Vamos esperançar que alguém fale alguma coisa ou dê uma pista. Sou-lhe muito grato por tudo isso.
A noite caiu em poucos minutos. Enquanto os três cavaleiros dormiam, Petrônio meditava, fitando escuridão, torcendo para que o companheiro ouvisse a tão sonhada palavra. Embora sereno, sua mente fervilhava os mais diversos pensamentos. Recordava-se dos seus familiares, do carinho do pai, de sua aldeia, e tudo era permeado pela lembrança da princesa Astrolábia. Raiava a aurora quando seus companheiros acordaram e o pegaram de olhos abertos, sem ter sequer cochilado. Foi quando Munir Mohamad recomendou-lhe que dormisse, pois não havia nada mais a fazer. Assim ele deitou-se.
As horas se passaram e Petrônio adormeceu. No final da tarde chegou Mansueto sem nenhuma novidade. Desse modo acordaram Petrônio e lhe deram a notícia que ninguém queria ouvir. Sua fisionomia era de estarrecimento. Embora fosse um cavaleiro firme e convicto de seus ideais, parecia fragilizado, como se previsse um triste fim.
- Cavaleiros – disse Munir Mohamad  – só nos resta amanhã. Vamos usar o dia de hoje para planejar a nossa fuga. Estamos lidando com um rei inconsequente e sanguinário. É impossível adivinhar o que há no alto daquela torre. Esse homem jamais dará o braço a torcer mesmo que alguém acerte:
- Justamente – concordou Mansueto – é loucura vossa enfrentar fila amanhã. Vá apenas hoje e fugiremos durante a madrugada...
- Não é bem assim, cavaleiros – interrompeu Petrônio – estamos cercados de guardas. Eu entrei nessa e vou até o fim.
- Mas vamos tentar. É melhor um covarde vivo que um herói morto – justificou Jacó Yoná.
- Eu não sou diferente de nenhum homem daqueles. Independente de qualquer coisa, vou continuar na tentativa. E tudo vai dar certo!
- Bem, já que é assim, eu continuo com o meu papel de ajudá-lo com as ferramentas que tenho. Daqui a pouco sairei para o castelo. Vim apenas abastecer o meu alforje. Dali só saio amanhã à tardinha.
- Bom, meus amigos, a fila me espera. Boa tarde e torçam por mim. E assim todos se despediram. 


O SEGUNDO ENCONTRO COM O REI

Ao se juntar à fila Petrônio remoeu os mesmos pensamentos que o acompanharam durante a madrugada. Mal viu o tempo passar. De repente se deu conta que estava diante do rei Hemengardo, e por sorte teve tempo para fazer a devida vênia. E o monarca foi logo dizendo:
- É a vossa segunda vez, não é? Lembro-me muito bem do cavaleiro.
- Sim, majestade.  
- Pois bem, mas vamos ao que interessa. Qual o vosso palpite?
- Já que nos é dito que pode ser qualquer coisa, deve ser um gato bem manso.
Mal deu o palpite, o rei soltou uma gargalhada estrondosa chamando a atenção da fila.
- Oh, que cavaleiro esperto e inteligente, mas qual a raça do gato, persa ou angorá?
- Persa, majestade.
- E a cor do bicho, preto ou rajado?
- Rajado, majestade.
- E o olho, preto ou esverdeado?
- Esverdeado, majestade.
- É um animal grande ou pequeno:
- Grande, majestade.
- Pesa menos ou mais que três quilos?
- Mais, alteza...
- O que o senhor disse?
- Disse mais, majestade?
- Tive quase certeza que o cavaleiro disse alteza. Muito cuidado, pois posso mandar cortar-lhe a cabeça. Sim, mas o gato é ruim ou bom caçador?
- É bom, majestade.
- Pois saiba, meu bom cavaleiro, o senhor quase acertou. Foi por pouco. Mas tenha esperança, pois amanhã poderá sair vitorioso. Lembre-se: é o vosso último dia de vid... quer dizer, de arriscar um palpite. Tenha uma boa noite!
E assim foi o segundo encontro entre Petrônio e o rei Hemengardo. Ele deixou o castelo cabisbaixo, envolto em mil pensamentos. Ao chegar à hospedaria seus amigos leram em sua expressão o fracasso da segunda tentativa. Petrônio foi logo dizendo que não queria cara de velório e exigiu que eles se animassem, pois restava mais uma chance e ele tinha esperança que tudo daria certo.
Era muito difícil evitar o assunto, mas, disfarçando ou não, passaram o dia falando de cavalaria, de suas infâncias, enfim retiraram do baú toda sorte de memórias. A noite chegou sem a companhia de Mansueto. Ele escolheu se abancar defronte ao castelo até os últimos minutos que precederiam o encontro entre o rei e Petrônio. Mais uma madrugada sem conseguir pregar o olho. Dessa vez ele lembrou de o quanto deveriam estar tristes as mães e irmãs daqueles tantos cavaleiros que perdiam as suas vidas em busca do mesmo objetivo.

A REVELAÇÃO

Uma agradável alvorada de pássaros anunciou o amanhecer. Um panapanã de borboletas amarelas dourou a paisagem. O sol raiava esplendoroso, emoldurado por gordas nuvens tonalizadas com todos os azuis. O dia estava lindo. Nada lembrava o que se passava no coração de muitos homens que, iguais a Petrônio, enfrentavam pela última vez a fatídica fila.
Mas, como diz a sabedoria dos idosos “nada melhor que um dia atrás do outro e uma noite no meio. Naquele exato momento, no castelo, a princesa Astrolábia apresentou-se à janela, no alto da torre. Estava acompanhada por Altisidora, sua dama de companhia. Era seu costume admirar a paisagem matinal, contemplando-a até onde os olhos permitiam ver. Num dado momento ela disse:
- Oh, meu Deus! Que paisagem linda! Nunca é muito contemplá-la. Tudo o que vejo nesses prados sem fim externa amor e perfeição. Quanta diferença da barbaridade que meu pai promove nesse reino. Quantos jovens morrendo por mero capricho dele. Todos os dias chegam homens dos mais distantes reinos, atraídos por sua oferta absurda. Sinto-me arrasada por ser parte indireta disso. Fiz o que pude para dissuadi-lo dessa crueldade, mas ele não cedeu.
- É uma pena, alteza – opinou a serviçal. Também sinto muita tristeza por tudo isso. E parece que nenhum homem adivinhará. É uma situação insustentável.
- É verdade... e saber que lá em cima há um insignificante piolho seco, uma coisa tão simples; e quem há de imaginar isso?
Nesse exato momento Mansueto ficou como uma estátua de bronze, sem conseguir acreditar no que tinha acabado de ouvir. Era mais ou menos sete horas da manhã quando ele saiu numa desabalada carreira até a hospedaria, e arfando como um cavalo cansado, entrou gritando:
- Descobri... descobri...
- O que foi?!! O que foi? Perguntou Petrônio.
- No alto da torre há um piolho seco...
- Como soube disso? Quem disse?
- Agora a pouco a princesa Astrolábia apareceu na janela se lastimando com uma criada sobre a insanidade do rei. Num dado momento ela disse ser quase impossível supor que na torre havia um piolho seco.
- Por Alá!!! Um piolho seco?!! Que coisa sem sentido!!! - exclamou Munir Mohamad .
- Mas ele nunca negou que era uma coisa normal. Para quê algo mais comum que um piolho seco? - lembrou Mansueto.
- É verdade – concordou Jacó Yoná – inclusive estou com a minha cabeça coçando muito desde ontem. Deve ser piolho...
- Bom, mas como eu dizia – continuou Petrônio -, a melhor coisa é ter esperança. Estou muito feliz com essa notícia. Devo-a a vosmecê, Mansueto, amigo fiel. Fico muito agradecido por sua abnegação. Terei o dia e a tarde de hoje para descansar e me alimentar melhor. Estou decidido a ir para a fila amanhã bem cedo, pois é insuportável ver tantos homens descendo para a fila da guilhotina. Com certeza salvarei os que virem depois de mim. Mas... a propósito, cavaleiro Jacó Yoná, já que pegastes piolho, tive uma excelente ideia. Vou banhar o vosso cabelo com bastante vinagre e levar um exemplar de piolho de presente ao rei.
Ninguém conseguiu conter a gargalhada. Naquele exato momento o ânimo de todos mudou, ajudado pela notícia providencial. O lindo amanhecer parece ter prenunciado a grande novidade. A felicidade não cabia neles, então resolveram tomar algumas bilhas de vinho sem a presença de Petrônio, o qual deveria enfrentar o rei com sobriedade. Ele nunca se sentiu tão ansioso. E lá se foi o valente cavaleiro.


O TERCEIRO ENCONTRO COM O REI

Dessa vez os seus pensamentos se voltaram para o rei. Petrônio via a empáfia e o autoritarismo do rei Hemengardo como sinal de fraqueza e incapacidade de governar. Ele se fazia respeitar pelo medo. Petrônio sempre ouviu histórias contadas por seu pai sobre reis bondosos e justos iguais ao seu reino de origem. Era difícil aceitar calado um monarca estúpido, que ao menor sinal de insatisfação ameaçava cortar a cabeça dos plebeus. Petrônio sentia-se superior ao monarca, pois entendia que alguém tão mau não deveria sobrepujar os bons, tampouco assumir um posto de comando. Para o jovem cavaleiro, era possível reinar com bondade e justiça. Ao mesmo tempo não conseguia imaginar a reação do rei diante da sua adivinhação. Para coroar os seus pensamentos, a lembrança de Astrolábia não o deixava em paz. Assim, com a mente fervilhando, em menos de uma hora estava diante do trono, mal tendo tempo para a típica deferência que o monarca priorizava. Como era comum, ele pautou-se de ironia.
- Ah! é vosmecê! Seja muito bem vindo, nobre cavaleiro! Percebo que é a vossa última tentativa... quem sabe adivinharás hoje. Dizem que a esperança é a última que morre, não é verdade? Estou ansioso para que não engrosses a fila dos degolados... mas vamos ao que interessa... o que há no alto da torre?
Nesse exato momento, com um ar bastante irônico, Petrônio retirou de uma caixinha o piolho seco, apanhado após o banho de vinagre na cabeça de Munir Mohamad, e respondeu à queima roupa:
- Um piolho seco igual a este!
Mal pronunciou tais palavras, o rei soltou um forte grito e estatelou-se para trás. O barulho chamou a atenção de todos. Em fração de segundos surgiram guardas armados, perguntando o que Petrônio havia feito ao rei. Uma equipe de médicos e serviçais surgiu num rompante, munidos de medicamentos, água fria, toalhas e uma almofada de seda com galões de ouro para que o monarca colocasse a cabeça. Petrônio explicou que o rei teve o passamento após ouvir dele o que havia no alto da torre. Todos ficaram impressionados, inclusive a rainha Cassandra Celeste, a qual não se conteve e veio acudir o marido e falou:
- Quer dizer que o cavaleiro adivinhou. Que feito notável! Mas afinal o que o cavaleiro disse?
- Disse que no alto da torre havia um piolho seco...
- Oh! Que façanha! É exatamente um pi...
Sem que desse tempo de a rainha concluir a palavra, o rei estrebuchou-se entre os seus socorristas e gritou: 
- Não! É um engano da rainha... não há piolho algum na torre... e sim um pincel... a rainha ia dizer pincel. Na realidade o cavaleiro errou.
Todos percebiam que o rei mentia e pareciam estarrecidos com a adivinhação de Petrônio Os homens que vinham logo em seguida a Petrônio, engrossando a fila, se amontoaram curiosos pelo resultado. E sem que o rei concluísse suas artimanhas, surgiu uma voz doce e delicada na multidão. Era Astrolábia dizendo:
- Papai, por que fazes o contrário do que sempre me ensinou? Desde que nasci o senhor fala que nunca se deve mentir. Eu e mamãe sabemos que no alto da torre há um pi...
- Não! – gritou escandalosamente o rei – não diga uma palavra... está havendo um grande equívoco. No alto da torre há um pião.
- Não, papai, não há um pião. Eu estava nesse momento no alto da torre, assisti toda essa cena e, para dirimir a dúvida, trouxe o que estava debaixo da redoma de vidro... veja, é um piolho seco.
- Não... não... não... - insistia o rei já quase passando mal, e continuou: - o piolho estava lá certamente porque alguma serviçal piolhenta e curiosa andou ali... na verdade o objeto certo é uma redoma de vidro que coloquei lá. Esse cavaleiro não acertou... ele não disse que era uma redoma de vidro.
Enquanto o astucioso rei falava, Petrônio parecia uma estátua, extasiado com a presença de Astrolábia. Ela possuía uma estatura alta, mas sem exagero. Sua pele era lindamente clara, mas os nobres traços de sua cabeça impediam a insipidez que às vezes acompanha outras moças de pele louçã. Seus olhos brilhantes e azuis muito claros, o soberbo arco que formava suas sobrancelhas graciosas e suficientemente marcadas, davam muita expressividade à testa. O nariz aquilino bem formado, os dentes brancos como pérolas sobressaltavam-se emoldurados por lábios grossos e púrpuros. A serenidade de suas expressões permitia-lhe o exercício de habitual superioridade e um caráter sublime, que qualificava e se mesclava àquilo que era dado pela natureza. Seu profuso cabelo, de uma cor entre ruivo e louro, estava disposto de um modo gracioso e bonito, em inúmeros caracóis, formando o que a arte acrescentava à natureza. Os cachos eram enfeitados com joias. Ela trazia no pescoço uma corrente de ouro sustentando um delicado camafeu do mesmo metal.  Usava braceletes nos braços desnudos. Seu vestido era de seda de tom alaranjado, sobre o qual ela trazia uma longa túnica solta, que se estendia ao chão, com mangas muito largas, sem ultrapassar os cotovelos. A túnica era da mais pura seda em tom carmesim. Um véu do mesmo tecido, entrelaçado com ouro, vinha preso na altura da testa, e poderia ser puxado sobre o rosto e peito ao estilo espanhol, ou disposto como uma manta sobre os ombros. Suas formas eram lindamente simétricas. Toda essa beleza não deixava Astrolábia dever às mais lindas donzelas e princesas de outros reinos.
Perdido nessa observação Petrônio estava indiferente aos seus derredores e, curiosamente, percebeu que a princesa o olhava fixadamente e de forma amorosa. Nesse instante a rainha sentenciou:
- Perdoa-me, meu marido, até hoje nunca ousei contradizer vossas palavras, mas não estás sendo justo. Vossa majestade sempre me disse que no alto da torre havia um piolho seco... às vezes eu até admirava por ninguém adivinhar algo tão simples. Astrolábia cansou de ouvi-lo dizer a mesma coisa, portanto não é correto da minha parte endossar o vosso equívoco. Queira admitir que esse cavaleiro adivinhou.
Enquanto a rainha falava, o rei se contorcia a cada palavra, obviamente revoltado com a sinceridade da esposa e por ver-se obrigado a desdizer-se diante da multidão. A julgar pela personalidade do rei, certamente ele nunca se sentiu tão ultrajado, e justamente por alguém que não podia mandar cortar a cabeça, como lhe era tão fácil proclamar. Com certeza a rainha tinha consciência daquela delicada situação, mas não havia outra oportunidade para intervir. Ela sabia que o marido distorcia os fatos para mandar Petrônio para a guilhotina. Então, muito sem graça o monarca disse:
- Bem... é... é... hummm! então... enquanto a... a... rainha falava minha memória foi... foi... foi... avivada e... é... de fato se trata de um piolho seco... é que... que... que... faz tanto tempo que eu confundi. Mas que bom que... que... que... minha esposa, a mulher mais inteligente dentre todas as mulheres desses reinos, e nem por isso menos recatada e do lar, fez essa observação. Isso é... é... é... comum à realeza.

REI HEMENGARDO INVENTA OUTRO DESAFIO

Tais palavras, ditas com notório descontentamento soaram como piada para todos, inclusive Petrônio, que confirmava a sua impressão sobre a personalidade parva do soberano.
E continuou o monarca:
- Então... mas eu pensei bem e achei melhor apresentar outro desafio ao cavaleiro, afinal de contas creio ter sido muito imprudente oferecendo a minha filha em casamento por via de uma tarefa tão fácil, ou melhor, facílima. Minha doce Astrolábia não tem preço, portanto vou apresentar-lhe um novo desafio.
Nesse instante, Petrônio o interrompeu:
- Com a vossa permissão, majestade, mas não era apenas essa tarefa?
Meio sem graça o rei deu logo um jeito de inventar um artifício:
- Na realidade o meu ministro colocou essa observação no pergaminho que mandei espalhar no reino. Parece que os serviçais rasgaram a parte do letreiro onde se lia isso. Com certeza a minha própria esposa e também Astrolábia não viram tal informação, portanto fazem tais alegações. Mas, como sou um rei muito justo, dou-lhe duas condições para escolher. A primeira é que o senhor desista agora mesmo e tudo se encerra por aqui, sem guilhotinas e sem casamento; a segunda é...
Nesse instante Petrônio o interrompe:
- Mil perdões por interrompê-lo, majestade, mas já que cheguei até aqui aceito a segunda condição; pode dizê-la.
Petrônio estava consumido de amor por Astrolábia. Para sua felicidade plena, sentiu no olhar da princesa o mesmo sentimento, então restou-lhe ir até as últimas consequências. Ao perceber a firmeza do corajoso cavaleiro o monarca demonstrou profunda insatisfação, mas como era muito ardiloso e se valia da certeza da derrota de Petrônio, disse:
- É o seguinte, cavaleiro, eu tenho em meu castelo uma negra encantada. O nome dela é Catarina. Todos os dias, aos primeiros raios de sol ela sai em direção a uma fonte encantada, onde brota uma água especial e exclusiva dali. Ela leva um odre e o traz cheio. Essa água é única, não há nada igual em toda a região e eu sei muito bem identificá-la ao sorvê-la. Sua tarefa é a seguinte: o senhor terá que ir junto com a negra Catarina e trazer outro odre cheio com a mesma água. Mas deve chegar antes dela. Essa é a tarefa, meu rapaz. Apareça aqui amanhã bem cedo para receber o odre e darmos a largada. Até lá e boa sorte!
Após o desaguar da segunda tarefa, Petrônio despediu-se e saiu. Na realidade estava encafifado. Não entendia como o rei o desafiara com uma tarefa tão fácil, afinal não havia dificuldade alguma em ir e voltar até uma fonte de água. Mas como o rei era um homem de atitudes duvidosas, achou melhor acreditar que era só aquilo. Então saiu em direção à hospedaria.
Ao se aproximar, observou os amigos que o aguardavam felizes, ansiosos para ouvir as novidades. Mas assim que Petrônio entrou fez-se clara a sua aura de descontentamento. Eles tinham certeza de que o amigo chegaria eufórico, afinal teria vencido o rei e, melhor, ganhado a mão de Astrolábia. Ficaram arrasados.
Petrônio contou-lhes o episódio, deixando-os revoltados com a intransigência e crueldade do rei. Ele sabia que lidava com uma pessoa matreira igual às raposas de Esopo, portanto entendia que o rei trazia alguma carta na manga. Foi exatamente com esse raciocínio que Munir Mohamad disse:
- É o seguinte, Petrônio, realmente é muito estranha a atitude do rei. Creio que até um menino é capaz de semelhante desafio. Realmente não há nada de extraordinário em ir e voltar numa fonte de água. Tem algo a mais nessa história. Mas como dizem os mais velhos: “tem oio no moio”. Mas é o seguinte, minha bisavó Belibicona dizia que “na porta de um doido, um doido e meio”, então amanhã iremos todos juntos ao castelo. Fiquemos atentos e, se necessário, usemos os nossos talentos. Quem sabe podemos ajudá-lo!
Petrônio concordou. A noite cobriu o reino com o seu véu negro-azulado, anunciada pelos caborés e milhares de morcegos que passaram para os seus afazeres notívagos. Todos foram dormir. No outro dia, antes que os raios de sol furassem as nuvens os cinco cavaleiros dispararam rumo ao castelo, onde se encontrava uma pequena multidão, ansiosa pelo acontecimento. Assim que chegaram foram surpreendidos por toques de cornetas e ribombar de tambores. Logo em seguida as gigantescas portas desceram rangendo e o rei apresentou-se acompanhado da guarda real. Ao lado do monarca, via-se uma negra azeviche segurando um odre vazio. Era Catarina, a qual trazia a mesma empáfia e modos irônicos do rei. Seus olhos revelavam um cintilar voluptuoso e carregado indolência, deixando Petrônio com a pulga atrás da orelha. E com alegria exagerada e desnecessária o monarca foi logo dizendo:
- Muitos bons dias, cavaleiro! Estás pronto?
- Sim, majestade.
- Mas é o seguinte, preciso explicar-lhe alguns detalhes importantes. A fonte de água fica a dez mil quilômetros daqui...
Ao despejar essa informação de maneira tão abrupta, por certo o rei queria que Petrônio desmaiasse de susto - como era comum acontecer a ele - desse modo tudo acabaria por ali. Mas, para sua surpresa, sem que ele concluísse, Petrônio exclamou:
- Perdão, majestade, mas é uma viagem de meses!!!
- Para vosmecê!
- Como assim, majestade?!
- Ora, como vos disse, a minha negra é encantada. Ela vai e vem em meia hora.
- O quê!!! Vossa majestade está brincando!!!
- Não sejas insolente, cavaleiro!!! Veja como falas com um soberano. Posso mandar cortar-lhe a cabeça agora mesmo. Não sou homem de duas conversas e tampouco brincadeiras.
- Mil perdões, majestade, mas então explica-me melhor.
- Pois bem. É exatamente o que eu disse. Vou cuspir nessa pedra assim que vosmecês saírem. O cuspe seca em meia hora. É o tempo que ela chega com a água. Por falar nisso cá está o vosso odre. A missão de vosmecê é ir e voltar no mesmo tempo que a negra encantada. Se o nobre cavaleiro quiser desistir, poupo-o da morte e podes ir para a vossa casa agora mesmo.
Enquanto o rei desenrolava o novelo de invencionices Petrônio olhava atentamente para os amigos que se espremiam na multidão. Mansueto ouvia tudo e narrava os detalhes para os outros. Num dado momento Munir Mohamad  piscou-lhe e fez uma série de gatimanhos, assinalando que tudo estava bem. Petrônio não interpretou bem os gestos, mas confiou no amigo, julgando ser algo que se desencadearia em seguida. O rei Hemengardo estava convencido de que Petrônio ia desistir exatamente naquele instante, mas para sua surpresa – e de todos – o valente cavaleiro disse firmemente:
- Não, majestade! Não vou desistir. É um desafio prodigioso, mas cabe a mim enquanto homem, tentar. Pode dar o sinal de largada.
Certo do fracasso de Petrônio, o rei não pensou duas vezes. Chamou Catarina, colocou-a ao lado do desafiante e cuspiu na pedra. Mal fez isso soou um estampido ensurdecedor, assustando os pássaros que alçaram voos desesperados. Era Catarina, que disparou como um raio, sumindo das vistas de todos num aparente encanto. Enquanto isso Petrônio mal havia descido os degraus defronte ao castelo, provocando gargalhadas no monarca. Mas assim que ele adentrou no bosque, Munir Mohamad o abordou, tomou-lhe o odre e pediu que ele se escondesse na fenda de uma das incontáveis rochas ali espraiadas. O companheiro percebeu imediatamente o que se tratava e enfurnou-se imediatamente.
Então Munir Mohamad disparou no encalço da negra Catarina, ultrapassando-a com grande margem de diferença. Ao perceber tal prodígio, a negra Catarina ficou irada. De repente teve um tremelique devido a decepção de ter encontrado alguém melhor do que ela. Logo passou mal e desmaiou. Como Munir Mohamad era um cavaleiro cavalheiro, achou por bem socorrê-la, e a negra recobrou os sentidos rapidamente, demonstrando clara insatisfação com o imprevisto. Então ele achou por bem acompanhá-la lado a lado, pois não sabia o caminho da fonte. Assim dispararam juntos. Confiante na sua capacidade, ele sabia que não teria dificuldade na hora do retorno para o castelo, e que chegaria com incomparável margem de diferença.
Assim que chegaram à fonte, encheram os odres e pegaram a estrada de volta. Muito ladina e sentindo que seria ultrapassada, Catarina gritou para Petrônio que se esquecera de entregar-lhe um anel de ouro a mando do rei, e que era parte da tarefa. No mesmo instante mostrou no seu dedo uma joia igual. Como Petrônio sabia das esquisitices do rei, pegou-o e o colocou num dos dedos. Em milésimos de segundos caiu adormecido. O objeto era enfeitiçado. Catarina soltou uma sonora gargalhada e, por precaução, despejou no chão toda a água do odre, substituindo-a por uma água comum que trouxe do castelo, e disse:
- Durma, cavaleiro, durma bem muito. Onde está a vossa extraordinária ligeireza?
E mal cumpriu tal artimanha, disparou rumo ao castelo. Mas como o próprio Munir Mohamad havia dito aos seus companheiros, “na porta de um doido, um doido e meio”, a astuciosa negra Catarina não imaginava que a muitos quilômetros dali, Mansueto estava com os ouvidos plantados no chão, narrando detalhadamente o que acontecia. Otacílio havia acabado de disparar o arco, cuja flecha partiu o anel no meio em milésimos de segundos, despertando Munir Mohamad. Ele percebeu o que se passara, inclusive notou o chão molhado. No mesmo instante despejou a água, retornou à fonte e reabasteceu o odre. Em fração de segundos lá estava novamente ultrapassando a negra Catarina. Sua velocidade era tão descomunal que fez um vácuo, reverberando um som indescritível nos intermináveis bosques. A pobre negra, confiante em sua trapaça, pensou ter passado no olho de um furacão. Nem fez conta do que se tratava.
Já haviam passados quatro minutos entre a largada no castelo e aquele conturbado momento, quando Munir Mohamad chegou até Petrônio e entregou-lhe o odre. O valente cavaleiro desenfurnou-se e saiu em disparada. Em cinco minutos exatos entre largada e retorno, lá estava Petrônio diante do rei. A multidão em volta ficou atônita pela extraordinária rapidez com que ele retornou, mas ao mesmo tempo não entendia como a famosa negra Catarina não chegara antes, ou junto ou em seguida dele. Então, com ares de sarcasmo e rindo muito, o rei falou::
- Ora, ora... eu sabia que o nobre cavaleiro desistiria. São vinte mil quilômetros!!! Essa não é tarefa para vosmecê. Nem a própria negra Catarina voltou e vosmecê me vem com esse embuste. Estás com muita sorte. Eu poderia mandar cortar-lhe a cabeça pela tentativa de me trapacear, mas como estou num dia bom, dou como encerrada a história. Siga o seu rumo, antes que eu mude de ideia. Bom dia para vosmecê.
E mal fez menção de entrar no castelo, Petrônio disse em tom firme:
- Nada disso, majestade!  
- O quê!? Como ousas! Por que dizes isso?
- Porque fui à mina e voltei. Essa é a água que vossa majestade ordenou que eu buscasse.
- Por mil e seiscentos diabos! que despautério é esse? Queres que eu me convença da vossa farsa? Mando já cortar-lhe a cabeça!!!
- Nada disso, majestade, chega de sangue. Só quero que experimentes a água que busquei na fonte que o senhor pediu... quer dizer... que o senhor ordenou.
- Ora! isso é impossível! vejo que sois ousado como o diabo.
Nesse exato momento a rainha Cassandra Celeste colocou-se diante do monarca e disse:
- Faça o seguinte, meu marido, experimente a água. Realmente terá sido um fenômeno o feito do cavaleiro, mas quem sabe ele está certo.
- Ora, minha esposa, vossa ingenuidade nem combina com a vossa sabedoria. Estamos diante de uma trapaça. É tão verdade que essa água não é a água da fonte encantada como é verdade que eu não sou rei. Mas para agradá-la e cumprir os protocolos, vou sorvê-la. Como é de costume, não consumo nada que não seja experimentado antes por algum vassalo. Há muita gente má nesse mundo e minha vida vale muito!
Tranquilizado pela verdade, Petrônio observava com firmeza e leve ar de ironia a falácia do rei, inclusive ignorou o desaforo de ter sido chamado de embusteiro.
Então, gesticulando, o rei ordenou que um de seus vassalos experimentasse a água. Assim que o homem deu os primeiros sorvos e fez sinal favorável, provocou nítida insatisfação no monarca. Obviamente ele aguardava gesto contrário. Estava tão certo de que Petrônio não realizaria a tarefa que nem teve tempo para síncopes. Então achou conveniente dizer:
- É o seguinte, cavaleiro, com certeza o meu escudeiro não foi feliz na apreciação da água, certamente o seu paladar lhe pregou uma peça, portanto, já que se passaram alguns minutos e ele não bateu as botas, sinto-me no dever de sorvê-la. Mas é apenas para desencargo de consciência, afinal a negra Catarina é única e imbatível. Não existe no mundo outra pessoa tão veloz.
E no meio desse discurso cheio de nove horas, o monarca foi sorvendo o líquido. Eis que a cada bicada fazia um gesto estranho, ora olhava para cima, ora para baixo, ora para os lados. Vez ou outra entortava a boca, franzia a testa, remexia o pomo de adão, subia e descia a orelha, enfim promoveu um verdadeiro festival de caretas. Quem o conhecia, sabia que aquilo tudo era um disfarce pela decepcionante surpresa. Ele estava num beco sem saída. Diante do choque, despercebeu-se das momices, matutando uma cachimanha para o imbróglio. Até que, perdido nesse espetáculo de mungangas, as ideias lhe fugiram, então, desesperado, ele deu um grito e estatelou-se no mármore da portada. Naquele exato momento toda sorte de assistência surgiu de todos os recônditos da fortaleza. Era médico, conselheiro, lacaio, criadas, aios, escudeiros. Traziam água fria, almofada, panos, unguentos, infusões, pós, tinturas, enfim uma botica completa para garantir que o necessário estivesse às mãos.
Encerrados os devidos cuidados, o monarca recobrou lentamente os sentidos, perguntando o que ocorrera. Ao ouvir a indesejável explicação, desmaiou novamente (ou fingiu). Então acharam por bem aguardar mais um tempo. Enquanto isso os plebeus se juntavam cada vez mais, ansiosos pelo resultado.
Um oleiro muito respeitado no reino comentou na multidão que o rei havia sido traído por suas próprias artimanhas, que tudo aquilo era puro teatro. Se sim ou não, o monarca parecia querer ganhar tempo para desvencilhar-se de sua própria armadilha. E após bons minutos do fanico, viu-se no dever de se recompor e enfrentar a realidade.
Estava ele se dirigindo a Petrônio quando Catarina surgiu como um raio, passados trinta minutos da largada, conforme o tempo anunciado como a duração máxima de ida e vinda. Diante da quebra de recorde promovida por Petrônio e da ira do rei, ele nem mais se lembrava dela, a qual entregou-lhe o odre com água, fazendo-o lançá-lo ao chão, esbravejando:
- Raios que a partam!!! essa é hora de vosmecê chegar, sua tartaruga parva e incompetente dos mil e seiscentos diabos!!!
A infeliz criada, completamente alheia aos fatos, tendo dado o máximo de si e certa do sucesso da trapaça, não imaginava ter sido superada com incomparável diferença. Assustada e sem entender a reação do rei, explicou:
- Majestade, eu fui e voltei em meia hora. Olhe o vosso cuspe que mal acabou de secar...
- Que cuspe que nada, sua lesma de uma figa. Eu pensava que vosmecê fosse um prodígio, enganei-me piamente. Como dizem os antigos “quem se sente o máximo por ser riacho quando vê o mar se assusta”. Sois, sim, uma bicha-preguiça!!!
- Mas, majestade, é impossível alguém me superar em velocidade. Está havendo um grande engano, tenha certeza.
A negra estava convicta de que Munir Mohamad  ainda dormia a muitos quilômetros dali. Ela, de fato era riacho e desconhecia o mar de velocidade chamado Munir Mohamad .
E continuou insistindo:
- Majestade, tenha certeza que estás diante de um trambiqueiro. Sorva a água que ele trouxe, não é a mesma. Tenho certeza absoluta.
Catarina estava convencida de que a água do odre era a que ela trocara no trajeto, portanto falava com tanta convicção. Mas como o rei já havia bebido, restou-lhe retruca-la, gritando:
- Cala-te!!! Deixe de desculpas esfarrapadas, eu já bebi... é exatamente a água da fonte encantada! O que me fizestes foi colocar-me em maus lençóis. Passo vergonha diante dessa multidão, pois confiava piamente no vosso taco.
A negra, completamente desnorteada e cheia de interrogações na mente, insistiu em sua defesa:
- Mas, majestade, o senhor sabe que eu sempre fui e voltei em meia hora; nunca neguei isso. Eu cumpri a tarefa. É o máximo que posso, mas mostra-me dentre essa multidão outro homem que percorra dez mil quilômetros em meia hora, ou melhor, vinte mil quilômetros entre ida e volta.
Extremamente irritado o rei bufou:
- Mentirosa!!! pois saiba que o cavaleiro que está ao vosso lado fez o mesmo trajeto em cinco minutos!!! Isso sim é um feito extraordinário, devo admitir!
Catarina viu-se numa enrascada, mas, até então não havia enxergado o homem que causara a sua derrota. Estava possessa de ódio. Então, enquanto o soberano bravejava, ela o olhou Petrônio dos pés à cabeça. Seus olhos faiscavam de ódio. De repente ficou sem entender, afinal fora Munir Mohamad o autor da façanha. Nesse instante Petrônio ficou petrificado, pois sabia que a negra revelaria a verdade. E como ele era um homem justo achou melhor contar o que houve:
- Majestade, tenho algo a dizer. É o seguin...
Sem que pudesse concluir, o soberano gritou:
- Cala-te! O assunto não chegou a vosmecê! Não vês que preciso resolver esse ultraje? Não costumo deixar passar em vão as traições e mentiras. E chamando os guardas ordenou:
- Guardas, levem essa negra imediatamente para a guilhotina. Cortem a cabeça dela!!!
Assim que a guarda real se aproximou a condenada deu um estouro e desapareceu como um disparo de bombarda. Sabendo todos que era impossível ir ao seu encalço, restou trocar olhares admirados em meio a uma névoa de poeira que soergueu, enquanto o rei deu um grito e estatelou-se no chão. E após a típica assistência, lambe-botas, adulações e teretetês o monarca recobrou os sentidos. Nesse instante Petrônio deu um suspiro profundo. Sabia que jamais a negra Catarina retornaria àquelas plagas. 

MAIS UM DESAFIO

Então o rei se voltou para Petrônio e foi logo sentenciando:
- É o seguinte, cavaleiro. Não sei como diabos conseguiste tal proeza. Mas como sou um homem de palavra, não posso desdizer o que eu disse. Mas vamos pôr os pontos nos ii. Como eu já havia dito, mandei o meu ministro preparar o pergaminho anunciando a proposta, creio que meus lacaios o pregaram erroneamente, ou deixaram que se rasgasse uma parte da informação. A verdade é que há uma terceira tarefa.
Convicto da astúcia do rei, Petrônio o interrompeu:
- Mil perdões, majestade, mas quando cheguei a este reino encontrei, de fato, muitos cartazes afixados em árvores e paredes, mas estavam perfeitos. Não havia rasgos. Dizia apenas que vossa majestade daria a vossa filha em casamento ao cavaleiro que adivinhasse o que havia no alto de uma torre, além de uma oferta em ouro, nada mais. Não havia nem segunda nem terceira tarefa.
- Queres dizer que estás me desmentindo?
- Majestade, perdoa-me, mas só é possível desmentir alguém se essa pessoa mentiu. É vossa majestade que usou tal palavra.
Com que autoridade fazes tais filosofares?!! Cuidado, posso mandar cortar a vossa cabeça agora mesmo!!!
Enquanto os dois dialogavam, a multidão permanecia no mais absoluto silêncio. Era um misto de medo e expectativa. Diante daquela intransigência, Petrônio achou por bem ceder mais uma vez:
- Queira perdoar-me, majestade. Eu não tive essa intenção. Pois então ordena-me a próxima tarefa.
- Pois bem, como sou bom anfitrião e gosto de receber bem os forasteiros que passam por estas plagas, vou oferecer a vosmecê um banquete e terás que comê-lo todo sem deixar um grão nas panelas. Essa é a tarefa: consumir toda a comida que for preparada.
Por mais que um banquete denotasse gentileza, Petrônio não sentia segurança nas palavras do rei. A cortesia soava suspeitosa, vinda do autor de tiranias tantas que encheriam um volumoso tratado. Mas como estava totalmente envolvido com a história, atraído pelo sentimento de amor puro e verdadeiro por Astrolábia, restou-lhe perguntar:
- Majestade, agradeço por vossa cortesia, mas quero fazer-lhe um pedido.
- Pois não, cavaleiro faça-o. Se for algo que eu possa atendê-lo, terei o maior prazer.
- É o seguinte, majestade, acompanham-me nessa viagem alguns cavaleiros. São homens bons e honrados. Posso convidá-los para o banquete?
Como já foi dito anteriormente, o rei tinha convicção de que tal tarefa era humanamente impossível de ser cumprida. Mas por via das dúvidas achou por bem perguntar-lhe ironicamente:
- E por acaso se trata de um batalhão de escudeiros?
- Claro que não, majestade. São apenas quatro deles.
- Ora, que bobagem! Vai dar no mesmo... quer... quer... quer... dizer, sejam bem vindos. Se são teus amigos, são meus amigos também... mais que isso, são meus convidados!
Diante das maquinações do rei, realmente quatro homens a mais dariam no mesmo. Mas o que será que ele tramava? até eu - que escrevo a história - estou curioso desde agora. Mas vamos lá. Então Petrônio indagou-lhe:
- Majestade, queira informar-me o dia dessa última tarefa.
- É o seguinte, cavaleiro, volte em vinte dias a contar de hoje, chegue exatamente quando o sol estiver a pino, quando então o cozinheiro real estará todo o banquete pronto. Mas tem um detalhe, vosmecê terá até o pôr do sol para consumir tudo o que foi feito. Tenha um bom dia!
Após a devida mesura, Petrônio retirou-se e foi contar a novidade aos amigos. Mal ele fechou a boca e Jacó Yoná deu um urro de felicidade, executou diversos passos de dança, parou, rodopiou, pulou, fez deferências que se fazem à realeza, embora carregada de trejeitos exagerados e gritou:
- Oh! majestade, até que enfim vou encher a minha pança!!! Nem acredito! Meu bom Moisés! Comida boa... comida de rei... obrigado, rei Hemengardo!!!
Assustados pelo rompante do amigo, todos se voltaram para ele, até que Munir Mohamad sentenciou:
- Acalme-se, Jacó Yoná! - Pelas barbas de Alá! Que gula desabalada é essa? Mal se fala em comida e vosmecê tem os mesmos chiliques do rei.
- Não é fome, meus amigos. Moisés até condena a gula, é que eu adoro comer, adoro comida...pena que não tenho um centavo no bolso!
- Pelo que vejo, o pecado agora mudou de nome - aparteou Mansueto.
- Bom, meus amigos, com gula ou sem gula, temos que dar conta do dito banquete - finalizou Petrônio, - Resta-nos aguardar o dia e hora aprazados.

UM REINO RICO E TRISTE

Os dias que se seguiram após a proposta do rei foram de muitas andanças pelo reino, permitindo a Petrônio e seus amigos conheceram a fundo a sua realidade. Os limites se perdiam de vista. Nessa andança descobriram que os plebeus e súditos moravam em terras do rei, pagavam altos impostos sobre tudo o que produziam, seja fruto da agricultura, da pecuária e seus derivados e viviam mergulhados em dívidas, sob vigilância da guarda real e regras rígidas. Para aterrorizar ainda mais, eram constantemente ameaçados, principalmente os mais idosos, os quais produziam pouco.
Cada residência tinha uma roca e um tear. O linho e seda fabricados eram para uso exclusivo da realeza. Ao povo eram reservadas fazendas grosseiras, como algodão cru, também destinados às selas dos animais. Apenas a realeza podia usar tecidos nobres e coloridos. Haviam vinícolas reais, cujos operários recebiam apenas a metade de um odre a cada final de ano. À realeza eram reservados vinhos finos, envelhecidos em toneis de madeiras de lei que enchiam os porões do castelo, consumidos em banquetes oferecidos aos visitantes nobres. Os moleiros se esforçavam para produzir o melhor trigo, cujos moinhos trabalhavam dia e noite. O reino de Monte Verde tinha a fama de ser um lugar onde as rocas, os teares, as almanjarras, os moinhos, os monjolos, enfim as máquinas não paravam nunca.
Mas todo esse trabalho era para benefício único e exclusivo da realeza.
Existia no castelo uma repartição que recebia e controlava toda a matéria prima produzida ali, assim como hortifrutigranjeiros, grãos, queijos, açúcar e tudo mais. Esse setor distribuía ao povo, mensalmente, tais produtos. Mas tudo era regrado de tal forma que em menos de um mês se exauria. Aos plebeus restavam sobras. Até mesmo os porcos e outros animais do reino se alimentavam melhor. O povo só recebia o seu quinhão após se reservar à realeza os produtos da mais fina qualidade de tudo o que ali se produzia. Em seguida priorizava-se os animais reais, principalmente os cavalos e porcos.
Eram proibidas festas que não fossem promovidas pelo rei, certamente por isso os mínimos acontecimentos despertavam tanta curiosidade, assim como o episódio com a negra Catarina. Nesses conformes havia controle até mesmo sobre a felicidade das pessoas, pois os raros momentos de diversão se davam durante as festas que a realeza oferecia à plebe. Ter a cabeça cortada dependia do estado de espírito do rei. Isso produziu pessoas que mais lembravam soldadinhos de chumbo, propensas apenas à obediência cega.
As pessoas carregavam um olhar triste, influenciado pelo sistema arbitrário, controlador e intransigente. O medo parece ter moldado esse comportamento nos plebeus e tudo era passado de geração a geração. Petrônio compreendeu isso durante o episódio passado junto a negra Catarina. Ele percebeu, inclusive, que os plebeus torciam silenciosamente por ele, demonstrando ojeriza às atitudes do rei. As raras pessoas que ousaram se opor à truculência do monarca foram degoladas. Quando, nos bastidores, alguém emitia opinião contrária ouvia imediatamente a frase “esse cavaleiro deve ter vazio os aposentos da cabeça”. Estaria a multidão pensando assim de Petrônio?
Esse era o reino de Montes Verdes. 
Os cinco cavaleiros andantes ficaram perplexos com a realidade do novo reino, principalmente os que tiveram a oportunidade de conhecer lugares regidos por homens justos, bons e honrados. Eles sabiam que existiam outros monarcas sanguinários como o rei Hemengardo, mas não eram maioria. E nesse empreendimento passaram-se os vinte dias como num passe de mágica.

A EXTRAORDINÁRIA COMILANÇA

Muito antes que o sol estivesse a pino os cinco amigos tomaram o rumo do castelo, pois queriam a certeza de evitar contratempos. O cheiro delicioso de comida emanava nos sete cantos do reino, atiçando o olfato dos plebeus. Desse modo, atraídos pelo aroma e pelo espetáculo que se seguiria, formou-se uma multidão diante da imponente fortaleza, cheia de curiosidade... e fome.
Após alguns minutos a porta monumental foi descida lentamente, sob o toque de clarins e retumbar de tambores. Em cada um desses portais ficavam de prontidão dois arautos, assistidos por seis trombeteiros, outros seis passantes e um forte corpo de soldados, armeiros, valetes e outros atendentes para prestar serviços. Petrônio só conhecia a parte dos fundos do castelo e ficou admirado com os jardins reais, repletos de flores, rosas e as mais lindas plantas ornamentais. Haviam muitos flamingos passeando nas alamedas, enquanto patos selvagens se refrescavam num belíssimo lago artificial. No centro havia uma suntuosa estátua de Alexandre O Grande, feita de bronze sobre um pedestal de mármore. O monarca apresentou-se com os seus típicos esgares, e finada a apoteótica exibição, foi logo falando:
- Sejam bem vindos, senhores cavaleiros! Não temos tempo a perder, pois a tarefa é audaciosa. E como já devem ter percebido, gosto das coisas esclarecidas e transparentes, portanto vou apresentar-lhes as regras para que eu possa dar a largada...
Nesse momento, Petrônio o interrompeu:
- Mil perdões, majestade, mas a regra não é consumir toda a comida feita aqui dentro do castelo?
- Claro, nobre cavaleiro, mas acho conveniente apresentar-lhes o cardápio... e a quan...tidade!
Essa última palavra saiu da garganta do rei com um tom sarcástico misturado com um ramram esquisito, do tipo daquele quando a gente engasga com cuscuz. Aquilo aumentou em Petrônio a certeza de que algo ainda mais anormal poderia vir. Então ele disse:
- Estou aqui para ouvi-lo, majestade!
- É o seguinte, durante esses vinte dias mandei colher toda a produção do reino. Dos moleiros vieram mil quilos de trigo saídos novinhos do moinho e uma tonelada de farinha de milho. Mandei matar duzentos bois, mil e quinhentos porcos, dez mil galinhas, cinquenta mil perus, trinta mil patos, quinze mil faisões, vinte mil chesteres, vinte mil marrecos, dez mil javalis, trinta mil carneiros, vinte mil perdizes, trinta mil bodes. Mandei fazer meia tonelada de pasta de esquilo, quatrocentos quilos de pasta de coelho e duzentos de creme de marreca. Há mais de duzentos quilos de pirão de bacalhau... sem contar os mil quilos de peixe frito e cozido. Preparamos trezentos quilos de polenta, mil de papa de aveia e mil quilos de variados biscoitos. Para a sobremesa foram feitos um tonel de doce de cidra, um tonel de doce de framboesa, um tonel de doce de cassis, um tonel de doce de pêssego, um tonel de doce de damasco, um tonel de doce de figo, um tonel de doce de cereja, um tonel de geleia de uva e um tonel de doce de tâmara. Para coroar de êxito, deve ser esvaziado um tonel com meia tonelada de vinho. É esse o modesto cardápio que tenho a oferecer-vos, nobres cavaleiros. Infelizmente a estiagem desse ano não nos permitiu uma produção melhor. Mas creio que dá para os cavaleiros encherem pelo menos um buraco do dente. Vosmecês podem ficar à vontade. Vou recolher-me em sesta, pois acabei de fazer o meu repasto. Assim que os senhores terminarem serei avisado pelos meus serviçais. Fiquem à vontade.
Durante o tempo que o rei desfiou o receituário gastronômico Munir Mohamad salivou e remexeu a língua como um cão esfomeado, mas os outros quatro cavaleiros ficaram estupefatos. Petrônio parecia uma pedra de mármore. Para eles a derrota se apresentou naquela hora. Mas como não eram dados a piripaques, acharam por bem se recomporem. E mal o monarca deu as costas Petrônio penitenciou-se:
- Cavaleiros, os senhores ouviram isso? Como dizem os mais velhos “quando a esmola é grande o santo desconfia”. Eu estava receoso com a cortesia, afinal não há nada de excepcional em se oferecer um banquete. Mas desse tipo!!! Se juntarmos esse alimento num lugar só, faz-se a montanha maior que as vistas nesse vale. Eu sabia que ele prepararia algo impossível...
Mal fechou a boca, Jacó Yoná exclamou:
- Impossível para vosmecês!!! Isso não é nada para mim!!! Estou faminto... a minha fome aumenta a medida que vejo coisas gostosas e guloseimas... vejam... sinto cheiro de pernil, de coxa saborosa de peru, um peito macio de frango... esse cheiro de bacalhau me desmorona... olha só a essência desses biscoitos de polvilho, essas geleias que exalam por todo o vale. Se eu pudesse comia até os cheiros, pois é um desperdício essa essência maravilhosa voar por aí igual aos passarinhos.
Enquanto falava, Munir Mohamad parecia se levar pelo vento seguindo o cheiro de comida. Seu enorme nariz ia na frente como um cão farejando. Seu trejeito era de uma teatralidade cômica. Ele inclinava o corpo enquanto se equilibrava na ponta dos pés. Os demais cavaleiros tentavam segurar o riso. Só Petrônio estava em outro plano. Não tirava do pensamento os plebeus que se amontoavam defronte ao castelo. Sentia-se desconfortável vendo tanta comida e ao mesmo tempo tanta fome e injustiça no reino. Mas infelizmente não era hora para se envolver em problemas. Então ele questionou Jacó Yoná:
- Diga-me com franqueza, Jacó Yoná, vosmecê consegue dar conta dessa montanha de comida?
- Claro! Por Javé! Hei de comê-la toda! E não entendo como vosmecê ainda faz semelhante pergunta a uma pessoa de fina apetite como eu. O meu problema é comer muito e ter pouco dinheiro... quer dizer... não ter nada de dinheiro!
Muito admirado Petrônio ponderou:
- Veja que temos diante de nós comida que dá para alimentar todo o reino. É impossível isso caber dentro de cinco estômagos. Eu, particularmente, só dou conta de um prato, uma pequena porção de sobremesa e uma taça de vinho... estamos perdidos!!!
Sem deixá-lo concluir, Jacó Yoná sentenciou:
- Bem, vou fingir que não estou ouvindo esses desaforos a minha pessoa. Façamos o seguinte. Como vosmecês comem igual a passarinhos, comam o alpistezinho de costume, o resto deixem comigo. Não se preocupem, pois dou conta.
Os cavaleiros se entreolharam desdenhosos e perplexos com a confiança - e gula do amigo, mas diante do que já haviam testemunhado, acharam por bem dar-lhe crédito. Mal encerraram o imbróglio, o cozinheiro-mor os chamou para iniciar o banquete. O salão principal do castelo parecia não ter fim. Havia uma intrincada combinação de aposentos naquela grande e irregular construção. Em uma ampla antecâmara se abriam um sem número de portas que davam para o jardim real. O ambiente interno era iluminado por lampiões, castiçais e archotes. As paredes estavam cobertas com trabalhos bordados, sobre os quais sedas de diferentes cores, entrelaçadas com fios de ouro e prata. Nelas tinham sido empregadas com toda a perfeição de que eram capazes os artistas reais, representações dos esportes da caça, das batalhas e da falcoaria. As paredes, de mármore de Carrara, eram forradas com peças de tapeçaria ou cortinas, e sobre o chão havia muitos tapetes persas, enriquecidos com bordados, feitos de cores brilhantes. Eram tão altas que faziam os lustres de prata parecerem pequenas lâmpadas. Numa dessas paredes se perfilavam dezenas de quadros gigantescos, emoldurados em ouro puro. Era a galeria real, cujas pinturas retratavam reis, rainhas e outros personagens nobres dos antepassados dos moradores reais. As janelas, estreitas e tão altas, iam de cinco palmos acima do piso até se aproximar do estuque. As cortinas, de cor púrpura e branca estampavam delicadas flores e o brasão real. Nesse ambiente eles deram início à comilança. Havia uma sucessão de mesas que pareciam infinitas. Todas pinceladas de terrinas e tigelas cheias de comida. Uma variedade de poncheiras e jarras traziam todo tipo de sucos, além de centenas de doceiras repletas de compotas.
Num dado momento a criadagem começou a abrir as portas alinhadas no corredor, em cujos cômodos se repetiam o mesmo cenário de desregramento de comida. O mestre-sala orientou-os a consumir os alimentos dispostos nos cômodos térreos, depois deveriam ganhar o primeiro e segundo andar, onde havia um banquete de igual proporção. Então Petrônio constatou o que todos sabiam. Realmente o rei não brincava em serviço. Se dependesse apenas dele, jamais dariam conta. Na realidade o cavaleiro andante não acreditava que Jacó Yoná fosse capaz de tamanha façanha, afinal era algo bizarro. Enfim o funcionário autorizou a comilança.
Petrônio, Mansueto, Munir Mohamad  e Otacílio se serviram com normalidade. Jacó Yoná, como não era dado a talheres e etiquetas, optou por uma gamela na qual estava disposto um delicioso pirão de galinha. A partir daí é quase inacreditável contar o que se seguiu.
Mas, para que o leitor não tenha frustrada a sua curiosidade, eis a narração fiel dos fatos.
O apetecido cavaleiro começou fazendo com as mãos grandes bolos, graças a fartura de farinha disposta à mesa. E, moldados os pedaços, conforme o tamanho máximo que cabia na boca bem aberta, ia jogando-os e engolindo-os como uma máquina, ou melhor, como forrageira. A velocidade era tão extraordinária que a olhos nus não se viam com nitidez suas mãos nem o trânsito do alimento da vasilha para a boca, exatamente como ocorrem com as paletas de um moinho de vento em movimento. Admirado com a proeza Mansueto cutucou os outros amigos e exclamou:
- E eu que ouvia quando criança minha mãe dizendo “para trabalhar é uma criança, para comer é um esmeril da França”.
- Exatamente igual a mim - concordou Otacílio - só que a minha, que Deus a tenha, dizia “para trabalhar é um lolô, para comer é um estopô”.
Mal trocaram esses refrãos perceberam que não havia mais um grão de trigo sobre as mesas. O versátil companheiro havia dado conta de tudo. Era notório que aquela tarefa já podia dar-se como vencida. Inacreditável! E como estavam satisfeitos restou-lhes contemplar o trajeto gastronômico do amigo, o qual, nesse interim, já havia partido para as bacias de latão, consumindo com ímpeto o que continham.
Em poucos minutos nada mais restava no salão. Jacó Yoná já estava vencendo o que fora disposto no outro cômodo. E assim foi se sucedendo em outro, em outro, em outro, até que subiram para o primeiro andar, onde a façanha se seguiu com a mesma intensidade. A desenvoltura do comilão era tão assombrosa que pensaram que alguém sacudia uma matraca nas imediações. Era um tac tac tac tão desabalado que demoraram perceber que eram os dentes de Jacó Yoná mastigando tudo o que encontrava pelo caminho. Nesses conformes foi vencido o segundo andar inteiro. A proeza era tanta que o comilão nem mais esperava os cozinheiros com as gigantescas caçarolas e camburões de comida. Ele agarrava as vasilhas nos degraus, despejando o conteúdo na bocarra que perdia para os dragões de Komodo.
No meio dessa afoiteza já nem mais esperava os cozinheiros tirarem os panelões do fogão, agarrando-os desesperadamente e despejando tudo na boca. Os cozinheiros, assustados, dispararam dali com medo de serem confundidos com algum embutido. E quando finalmente não restava nada, Jacó Yoná correu para a cozinha e lambeu todas as vasilhas onde dispuseram as comidas. E passadas mais ou menos uma hora a tarefa fora concluída.
Petrônio e seus amigos olhavam para Jacó Yoná sem acreditar.
Então Munir Mohamad perguntou-lhe com um ar irônico:
- Estás satisfeito, Jacó Yoná?!!!
Para sua surpresa ele respondeu:
- Que nada, cavaleiros! E apalpando a barriga, continuou - vejam só, ainda restam essas preguinhas aqui de lado!
Creio ser indispensável contar para o leitor que tal disparate provocou uma explosão de risadas. Então, Jacó Yoná explicou:
- Saiba, cavaleiro Petrônio, se eu tivesse que pagar-te o preço justo por tal oportunidade, nem todo o tesouro de Veneza e o ouro de Potosi bastariam... mas... não posso negar... ainda suporto mais algumas gamelas!!!

REI HEMENGARDO É DERROTADO

Então, eufóricos para dar a notícia ao rei, desceram e foram ter com o mestre-sala, o qual ficou boquiaberto. Mas como era verdade, correu até os aposentos reais para dar a notícia. Quando ele movimentou a aldrava da porta, o monarca gritou que estava descansando e que não queria ser incomodado.
Logo o funcionário informou que os homens haviam comido tudo e que não restava mais nem um grão de trigo. Nesse momento o rei soltou uma demorada gargalhada, pois tinha certeza de que brincavam com ele.
Mas como o serviçal insistiu, confirmando ao lado de outros lacaios, ele soltou um grito e desmaiou. E ainda bem que ainda estava na cama, pois ali mesmo ficou.
Após todas as assistências típicas, apareceu no salão como quem está confuso, olhou para o salão e perguntou aos serviçais sobre a veracidade dos fatos. Tendo obtido a confirmação de todos, restou-lhes estatelar-se no chão, provavelmente em razão da contrariedade. Como se sabe ele jamais imaginava ser derrotado numa missão aparentemente impossível.
Nesse instante, como o leitor já está cansado de saber, o rei foi cercado de cuidados, inclusive dessa vez a rainha se fez presente. Assim que ele despertou, dirigiu-se a Petrônio e olhou para ele com um olhar fuzilante. Seu rosto estava trancado. Então ele disse:
- É o seguinte, cavaleiro, é público e notório que... que... que... estamos diante de... de... de... um homem destemido. Eu... eu... eu... confesso que não queria admitir, mas... mas... mas...
- Fale logo, homem, desembucha!!! – exclamou a rainha, provocando sinais de riso em todos os que estavam ali.
O rei ainda estava abalado com o ocorrido. Em verdade custava-lhe admitir a derrota. A sua capacidade de inventar tarefas impossíveis parece ter se esgotado, e com muito custo ele admitiu:
- Pois... pois... pois... bem, cavaleiro, eu... eu... eu... autorizo o vosso casamento com... com... com... a mi... mi... mi... minha filha As... As.. Astro... Astro... Astro...lábia.. lábia... lábia... Astrolábia!!! Vamos tomar as providências para a data. Vosmecê pode voltar para a vossa hospedaria. Em breve mandarei chamá-lo.
Encerradas tais palavras, que saíram da garganta do rei como um naco de rapadura engolido às escondidas, todos se dirigiram à entrada do castelo, onde Petrônio foi aclamado como nunca fora visto na história do reino de Montes Verdes.
O rei ficou furioso, pois sonhava ser ovacionado dessa maneira pelos plebeus. Mas percebendo que o povo estava em número incomparavelmente maior, fingiu não ver. Então, muito pretensioso e desprovido de sensatez, desmanchou-se em mesuras e deferências ridículas, tentando demonstrar a Petrônio que aquelas aclamações eram dirigidas a ele. Restou aos que presenciaram a performance, olharem-se com ar de asco. (Dizem que os olhos falam).
Enquanto isso, numa das torres do castelo, Astrolábia apreciava o episódio, absorta em felicidade, sentimento compartilhado com a rainha, a qual sentia idoneidade em Petrônio.

O CASAMENTO

E após todos teretetês e taratatas pertinentes, chegou a semana do casamento. A cada dia chegavam comboios de carruagens trazendo reis, rainhas, condes, duques, marqueses com seus respectivos mordomos, ministros, conselheiros, mestres-salas e serviçais. Cada comitiva era acompanhada por tropas armadas, trajadas com galhardia e não diferentes vinham os cavalos, alguns cheios de pompa.
Os plebeus, tomados de curiosidade, se perfilavam no portal do reino para apreciar o evento que, por si, roubava a cena. A entrada apoteótica de alguns monarcas era anunciada por clarins, tambores e trombetas. Eram tantos ornamentos suntuosos que faziam dançar os olhos da multidão.
Todo o reino fora enfeitado com flores, fitas coloridas, flâmulas, bandeiras e insígnias reais. Próximo ao castelo foram dispostos dezenas de postes com guirlandas de flores brancas que se harmonizavam com os mais variados adornos ali expostos. Nas ameias do castelo foram dispostas centenas de girândolas pirotécnicas para serem acionadas no dia do casamento.
Uma multidão de serviçais e mestre de campo recebia as carruagens reais e as dispunham num grande pátio, as quais sairiam dali após o casamento. O mordomo real se encarregava de receber os presentes dos noivos e guardá-los num grande salão reservado.
O rei da Arábia ofertou-lhes um baú de prata, bronze e ornamentos de esmeralda e diamantes. O objeto, de beleza estonteante, veio repleto de barras de ouro. O rei do Egito trouxe uma carruagem de madeira nobre, cujos apetrechos dos animais eram do mais fino couro e prata pura, cunhadas com as insígnias reais. O rei de Marrocos presenteou os noivos com um cavalo de bronze em tamanho natural, assinado por exímio artista, peça típica dos jardins reais. A rainha da Síria brindou os nubentes com uma mobília completa de sala, toda em madeira de lei marchetada, pés de bronze e prata com incrustações de leões. O rei da Persia trouxe dez tapetes confeccionados com inigualável requinte, retratando os mais belos lugares de seu reino. As peças, bordadas com fios de ouro, eram únicas. Uma delas retratava um exército composto de dez mil homens montados em elefantes e comandados pelo rei Xerxes, O Grande. O rei da Grécia trouxe três quadros, um retratava a deusa Atena Promacos, o segundo era Atena Lêmnia, símbolo dos benefícios do poder ateniense sobre outras cidades, o último representava um episódio de Tróia, quando Páris roubou Helena de Menelau. Os quadros eram emoldurados com ébano, em cujas vértices se fixavam ornamentos de ouro maciço. Cada rei chegava com um presente melhor que outro. Os mordomos e mestres-salas faziam das tripas o coração para dar assistência e acomodá-los com suas incontáveis malas e baús nos cem números de quartos espalhados na fortaleza de pedras.

O GENEROSO REI BRUNHILDO

Mas um fato singular aconteceu exatamente nesse interim. Foi quando chegou uma das mais ricas comitivas, a qual roubou a cena. Era o rei Brunhildo Tibúrcius de Montecarlo, do reino de Carvalhaes.
O anúncio desse convidado chamou a atenção imediata de Petrônio, pegando-o de surpresa. No mesmo instante ele convocou os seus amigos para, enfim, resolveram a questão guardada a sete chaves. Logo em seguida pediu à rainha Cassandra Celeste que convocasse o rei para uma informação do interesse dele. Então, na presença do rei Hemengardo, da rainha Cassandra Celeste, da princesa Astrolábia, do rei Brunhildo, sua esposa Alexandra e a filha, princesa Meneleia, foi contada a história do tesouro roubado.
Petrônio explicou que já havia acertado com os seus escudeiros que naquele mesmo mês viajariam ao reino de Montecarlo para entregar-lhe o tesouro custodiado por eles. O rei Brunhildo trocou olhares com todos, perplexo.
Em seguida os quatro fiéis escudeiros entraram com o tesouro, expondo-o sobre um enorme tapete persa. Todos ficaram estarrecidos com a surpresa. A rainha Alexandra levou as duas mãos a boca e seus olhos pareciam congelados. Ela explicou que eles davam o furto como um caso perdido. Haviam feito várias diligências e vasculhado grandes áreas de floresta, sem êxito. O rei Hemengardo fez um esforço descomunal para – de fato, diga-se de passagem – não desmaiar. Estava atônico, sem acreditar. Ao mesmo tempo admirou-se da honestidade daqueles cinco homens, os quais, se quisessem, teriam ficado ricos para o resto da vida.
Após muitas conversas e elogios rasgados aos corajosos homens, o rei Brunhildo brincou, dizendo que veio trazer um presente para os noivos e acabou ganhando o maior presente. Então pediu que sua esposa retirasse dali as peças que tivessem maior valor estimativo para eles. Ela retomou sua coroa, a coroa do rei, um diadema da filha e um porta joias que pertencera à sua avó e rainha Beatriz I.
O bondoso rei disse que aquela atitude era tão nobre e bonita que não queria vê-la passar sem recompensa, portanto repartiria o tesouro em partes iguais e o distribuiria aos cinco cavaleiros. Eles recusaram, menos Jacó Yoná que foi logo dizendo:
- Meus amigos, se uma vaquinha te dão, agarra-a com as quatro mãos, assim dizia vovó. Aceite, é dado. A cavalo dado não se olha os dentes!
E mal fechou a boca os três escudeiros o corrigiram:
- Então aceite a tua parte, pois nós passamos bem sem riqueza.
Mas não houve quem negociasse contra a generosidade do grande monarca. Então  Petrônio pediu-lhe que dividisse apenas entre os quatro escudeiros, atitude que provocou notória insatisfação no mercenário rei Hemengardo, o qual comunicou aos novos ricos que, se fosse do interesse deles, daria-lhes títulos de nobreza e, se quisessem, tinha bons terrenos para venda, onde poderiam construir seus palácios. No mesmo instante Munir Mohamad disse ao rei que “quando se nasce numa choupana, dorme-se mal num palácio”. Eles não se importaram muito com a proposta, mas como dizem “cavalo dado não se olha os dentes”. O episódio da devolução do ouro do rei Brunhildo correu os sete cantos do reino e foi transformado até mesmo em romance e teatro. Todos o contavam para as crianças como exemplo de honestidade e justiça.
Certo dia estavam os quatro escudeiros arrumando seus tesouros, quando viram um saco de moedas de ouro nas coisas de Jacó Yoná. Eram moedas de um país diferente. Nada que tivesse relação com o presente oferecido pelo rei Brunhildo. Os demais companheiros estranharam e perguntaram de onde viera aquele ouro. Ele ficou vermelho e gaguejou, provocando desconfiança e decepção nos amigos. Jacó Yoná seria um ladrão?!!!
Mas, depois de muita conversa e documentos exibidos, descobriu-se que era a parte que o judeu recebera do pai quando deixara sua terra. Os escudeiros ficaram estarrecidos com a avareza do amigo, o qual passou por momentos críticos sem gastar uma grama de ouro. Ele prometeu mudar, dizendo quem erra e se esmera, a Deus se recomenda. Então os companheiros o perdoaram, afinal nesse mundo de reinos, reinados e reinações cada um tem o seu modo de ver a vida. Foi o que disseram. 

O CASAMENTO

Enfim chegou o dia do casamento. Astrolábia estava mais bela que o sol. Petrônio, radiante e seus amigos não se continham de alegria. O rei Hemengardo mandou convidar todos os plebeus. Nunca se viu tanta gente e tanta felicidade no reino de Montes Verdes. A rainha Cassandra Celeste demonstrava grande simpatia para com o genro desde que o viu pela primeira vez.
O banquete se dividia em duas alas internas do castelo, a da realeza, pautada pelas mais finas porcelanas do reino da Inglaterra, louças do reino da China, cristais do reino da Germânia, toalhas e guardanapos do reino da França e talheres de ouro puro do reino de Marrocos. Toda a comida fora preparada sob a supervisão do famoso cozinheiro Trimálquio, mandado buscar no reino de Roma, o qual serviu os mais finos pratos e deleitosos manjares. Aos convidados da realeza foram oferecidos delicados mimos e souvenires feitos em ouro e prata com as iniciais dos noivos. 
A mobília, em madeira de lei, torneada, entalhada e folheada a ouro, chamava a atenção pela beleza. As mesas estavam forradas com toalhas finas de renda francesa, dispostas entre suntuosas poltronas acolchoadas com veludo. Os gigantescos salões eram permeados de lustres de cristal francês trabalhados com primorosos desenhos.
A ala dos plebeus e serviçais fora disposta num pátio ao lado do jardim real, onde ficavam perfiladas sucessivas mesas improvisadas de madeira e pratos de latão. Não era costume dos súditos o uso de talheres, cujas mãos faziam o papel. A fartura não era diferente do que se serviam aos nobres, pois o rei Hemengardo quis passar aos convidados a impressão de bondade e de um reino feliz. De fato naquela data os súditos realmente estavam felizes pela oportunidade de se deliciar com variadas comidas e pela simpatia que sentiam pelos noivos, em especial, Petrônio.  
Jacó Yoná era um dos que se fartavam, embora inspecionado pelos outros amigos, os quais não queriam passar vexame. Depois do flagrante do seu ouro escondido a sete chaves, passaram a fazer gracejos com ele, pedindo que pagasse um repasto, comprasse uma bota, uma armadura para algum deles. Isso provocava irritação no sovina. Todos riam.
A cerimônia de casamento fora presidida pelo bispo de Bragança, sob forte emoção. Os figurinos finos e chapéus exóticos das princesas, rainhas, condessas e duquesas promoveram um verdadeiro desfile de moda. O banquete entrou noite adentro, iluminado por centenas de archotes espalhados dentro e fora do castelo. Ao toque da meia noite houve um show pirotécnico que se demorou meia hora. A grandiosidade das explosões em série fez tudo parecer dia. Durante algum período a noite foi ocultada por um sol artificial que certamente era visto por todos os reinos próximos. Os músicos reais executaram agradáveis melodias, colocando todos para bailar até o dia amanhecer.
O rei Hemengardo mandou vir do reino da Lusitânia uma comitiva de artistas que apresentaram os mais belos dramas. Teve malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, homens de pernas de pau, pau de sebo, gato no pote, shows de títeres representando famosos romances antigos e toda espécie de espetáculo circense. Os festejos se demoraram três meses. Tudo o que aconteceu naquela data nunca havia sido apreciado pelos plebeus no reino de Montes Verdes, razão pela qual caíram em deleite. A notícia do casamento da princesa Astrolábia com o cavaleiro Petrônio percorreu os mais impensáveis reinos, contada em prosa e verso por artistas de rua.

O PRÍNCIPE NICOLAU

Em menos de um ano o reino foi colhido por uma notícia que encheu todos de felicidade. Astrolábia deu à luz a Nicolau, um belo menino rosado, olhos verde-esmeralda e cabelos claros como os raios de sol. O rei Hemengardo mandou preparar uma festa que demorou-se uma semana e com atrativos semelhantes aos que tanto alegraram o casamento da princesa. Todos os plebeus foram convidados.
Aos dois anos o pequeno príncipe mais parecia um anjo. Seus cabelos dourados e a pele louçã emprestavam-lhe um aspecto que encantava. Todo o reino admirava a maneira cuidadosa que o rei Hemengardo dispensava à criança, cobrindo-o de presentes, ensinando-lhe brincadeiras, montaria, contando histórias de cavalaria, passeando nas aldeias, enfim só tinha olhos para o neto. Mas toda essa doçura era exclusiva para o pequeno príncipe, pois ele pouco mudou na forma de reinar, inclusive parecia apenas tolerar a presença de Petrônio, tratando-o com certa desconfiança. Alguns diziam que tal tratamento refletia na verdade receio do genro, o qual era extremamente trabalhador e aparentava um estilo congênito de liderança e carisma. Como diz o ditado “A virtude é mais perseguida pelos maus do que amada pelos bons”.
A essa altura da história - sabe-se lá por quê - provavelmente por terem se tornado ricos (pensa o autor dessa história) - o rei mandou organizar uma grande solenidade na qual conferiu títulos de nobreza aos quatro escudeiros de Petrônio, os quais já haviam adquirido minifúndios naquele reino e trabalhavam a todo vapor. Desse modo eles se tornaram duque Jacó Yoná, duque Mansueto, duque Munir Mohamad e duque Otacílio. Como sempre disse Jacó Yoná - aliás - duque Jacó Yoná: “Junta-te aos bons que serás um deles”
Certo dia Nicolau amanheceu febril. Os médicos do reino o cobriram de cuidados, permitindo-lhe certa melhora. Após alguns dias ele apresentou forte diarreia e recusava alimentos. O rei mandou vir os melhores médicos de vários reinos, os quais aplicaram modernos tratamentos, mas a criança faleceu em poucos dias, numa tarde fria e chuvosa.
Astrolábia, Petrônio e a rainha Cassandra Celeste ficaram desolados, mas nada se comparava à reação do rei Hemengardo, o qual entrou em estado catatônico. Quem o visse tinha-no como estátua. O funeral do pequeno príncipe foi marcado por uma multidão sem fim, inclusive famílias reais de outros reinos. As lágrimas de todos se misturavam a chuva torrencial. Parecia que os céus também choravam. O corpinho do príncipe, vestido com uma imponente indumentária branca, permeada de flores do mesmo tom, foi posto sobre uma charola de ouro e prata, sob um pálio conduzido solenemente pela guarda real. O cortejo foi marcado pelo repique lento e lamurioso dos sinos da capela real e toques de tambores. O cenário trazia uma tristeza acinzentada e fria. Nunca se viu tanta comoção no reino de Montes Verdes.

A MORTE DO REI HEMENGARDO

Passados dois meses do infeliz episódio, todos tentavam se recompor, reagindo como podiam, mas o rei mergulhara numa tristeza sem tamanho. Sua única movimentação era da cama para uma cadeira. Os médicos o cobriram de cuidados, a rainha Cassandra Celeste o acompanhava dia e noite fazendo o possível para reanimá-lo, mas era em vão. Desde a morte do neto nunca mais disse sequer uma palavra. Era um vivo morto. Ele mal comia. A notícia da sua tristeza comovia até mesmo os plebeus que tanto sofreram com o seu autoritarismo.
Diariamente muitos deles, principalmente os idosos, peregrinavam até o portão do castelo para ouvir o anúncio da situação do monarca. Apesar de sofrerem anos a fio o tratamento arbitrário e intransigente por parte dele, havia piedade naquelas pessoas. Nada endureceu os seus corações, certamente gratas pelos raros momentos bons que viveram ao lado do rei. Ou simplesmente por saberem perdoar. Quem sabe refletia a ausência do senso de dignidade e amor próprio. Estavam satisfeitos com migalhas? Estariam inspirados no amor transbordante que o monarca demonstrava ao neto?
Certo dia, já acamado e esboçando raras reações, sentiram que ele chamava os familiares, os quais o circundaram imediatamente. Com muito custo o rei tomou a mão do genro e com uma voz sussurrada e arfante disse “perdoa-me”, meu filho... perdoam-me todos vosmecês...
Numa certa manhã, todos acordaram. Menos o rei.
O sepultamento foi acompanhado por uma multidão menor que o enterro do neto, cujos reis mais próximos também se fizeram presentes. Durante o percurso para o cemitério todos comentavam sobre as últimas palavras do rei. Diziam que ele devia ter pedido perdão pelos homens que mandou cortar a cabeça, que devia ter pedido perdão a Deus, que devia ter pedido perdão ao seu próprio povo. Alguns achavam que ele fora um homem infeliz e isso fora o seu maior castigo; outros defendiam que ele engrossara a fila do inferno, alguns alegavam que Deus o acolhera, pois seria misericordioso com os que se arrependiam, enfim todos tinham opinião e não existia no enterro outro assunto.

MONTES VERDES: UM REINO FELIZ

Em menos de um ano o reino já se tornara praticamente comandado pela rainha Cassandra Celeste, a qual dava sinais de benevolência para com os súditos e justiça na partilha do que ali era produzido. Mas um ano após a morte do rei uma notícia feliz tomou conta do reino. Petrônio e Astrolábia tiveram um filho, batizando-o de Leopoldo. Era admirável a semelhança com o irmão falecido, mas por incrível que pareça o novo príncipe nunca sequer gripou. Leopoldo andava solto pelo reino, brincando com todos os garotos, tirando o sossego de sua ama de companhia. Era amado por quem o conhecesse.
Convidado pela sogra, Petrônio assumiu o comando de muitas funções, delegando tarefas, resolvendo contendas, criando e suprimindo leis, enfim transitava entre os plebeus com uma respeitabilidade nunca vista. Ele e Astrolábia percorriam o reino com frequência. Ela, montada num belo palafrem. Ele, num imponente ginete andaluz.  A cada dia reforçava na rainha a certeza de que seu genro era um homem virtuoso e honrado. Na realidade a soberana não se sentia confortável na função herdada e o fizera apenas pela tradição.
Certo dia convidou a filha e comunicou-lhe que iria prepará-la para assumir o comando do reino, conforme a tradição real. Para sua surpresa, Astrolábia recusou, alegando não ter ainda a mínima capacidade administrativa. Ao que parece a atitude da rainha era uma forma velada de repassar o comando do reino a Petrônio. Ela só queria ser fiel à regra. Então, diante da recusa, ofereceu a missão ao genro. Ele negou insistentemente, dizendo que tudo faria para ajudá-la, mas que não era digno de ocupar um lugar que, por direito, era delas.
Passaram-se dois anos e o reino de Montes Verdes tomou um rumo totalmente diferente. Foram reduzidos os impostos e cada plebeu recebeu como doação um corte de terra para trabalhá-la para si, conforme suas aptidões. Naquele primeiro ano a produção de hortifrutigranjeiros, grãos, queijos, açúcar, vinho, azeite e tudo mais que o reino produzia duplicou. O reino de Montes Verdes passou a vender parte de sua produção para outros reinos. A felicidade se tornou presente na vida de todos.
A família real tomou parte da vida social do reino e nunca foram tão amados e respeitados. Todos viam em Petrônio a nítida imagem de um rei. Astrolábia costumava brincar, dizendo que ele era um rei sem coroa, por isso era um rei maior. Restava-lhe rir. O amor intenso entre o casal era proclamado nos quatro cantos, cantado nos romances e até mesmo transformado em peças teatrais, cujas carroças de mambembes percorria todos os reinos levando alegria a todos.
Mas o destino traçava outros planos para Petrônio, pois certo dia a rainha o chamou junto a filha e disse:
- Meu amado genro, eu nunca imaginei que pudesse ver o que está acontecendo em nosso reino. Sei que sou parte dessa mudança, pois nunca aprovei as atitudes do meu marido. Mas dando a “César o que é de César” vosmecê é o grande transformador de tudo o que acontece por aqui. Somos um novo reino, há felicidade no olhar dos nossos súditos e hoje a fartura de alimentos não é exclusividade da mesa real. E uma coisa é certa: desde que o vi pela primeira vez senti bondade, justiça, inteligência, coragem e retidão sem vossa pessoa, qualidades cabíveis a um rei, portanto mais uma vez peço-vos que aceite o convite de assumir o comando deste reino. És como um filho para mim e estou aqui como conselheira e apoiadora. Por favor, meu genro, eu voz imploro, aceite.
Enquanto a rainha falava, Petrônio olhava os verdes montes que se espraiavam até o horizonte. Seus pensamentos estavam voltados para a sua aldeia natal. As palavras e os ensinamentos do pai ecoavam em suas lembranças. Como foi bom ter seguido suas orientações, como foi bom ter sido honesto e justo. Então respondeu:
- Minha amada sogra, vossas palavras muito me alegram. Sou grato pelo vosso reconhecimento, mas eu prefiro que as coisas continuem como estão. Eu continuarei ajudando-a porque também reconheço o quanto és justa e honrada. Eu quero...
Sem deixar que Petrônio concluísse, a rainha o interrompe:
- Não, meu genro, eu não aceito o vosso não. Por favor, eu vos imploro. Pegue esse cetro. Não se valha na tradição nem nos costumes. Esse reino é nosso e é vosso. Sois um rei por excelência...
Então Petrônio aparteou:
- Tudo o que sou, amada sogra, devo ao meu pai, um viúvo que educou a mim e a meus irmãos com a mais absoluta coerência e justiça, um homem sereno que impunha respeito pela palavra, mansidão e serenidade. Mas não posso aceitar. Posso, sim, ajudá-la. 
- Não faça isso, meu filho, por favor.
Nesse instante, Astrolábia aparteou:
- Aceite, Petrônio. Sois um homem virtuoso. Deste testemunho de tudo o que um homem deve ter de bom. Vamos ajudá-lo. Por favor, aceite. Serás a grande inspiração para o nosso filho, o qual um dia será coroado “Rei Nicolau”.
Uma miríade de emoções conflitantes parecia ter assolado Petrônio. Ele estava arrasado, pois sentia-se como quem recebe algo indevido. Ao mesmo tempo não queria deixar a sogra insatisfeita. Mas após muitas e muitas horas de insistência sentiu-se no dever de dizer sim. E nunca se viu tanta alegria naquele pedacinho do jardim real. Assim Petrônio assumiu o reino de Montes Verdes.

O REI PETRÔNIO

Houve uma bela solenidade, embora ele pediu que fossem excluídas as pompas tradicionais. Sua aclamação reuniu uma multidão maior que a de seu casamento. Muitos reis vizinhos fizeram questão de prestigiar. Alguns vieram pela fama de justiça espalhada sobre ele. Petrônio e a família real se tornaram cada vez mais respeitados e amados por seu povo.
Dois anos se passaram. Montes Verdes tornou-se um reino famoso e cada vez mais rico, exportando boa parte de sua produção para outros reinos. A rainha Cassandra Celeste passou a organizar muitos festejos e comemorações, convidando artistas de outros reinos proporcionando lazer para o seu povo. Nicolau cresceu como um Hercules, saudável, forte alegre e valente como o pai.
Mas passado todo esse tempo o rei Petrônio sentia cada vez mais a saudade do pai e dos irmãos. Então comunicou o seu desejo à sua família, recebendo apoio, inclusive a princesa Astrolábia e a rainha Cassandra Celeste fizeram questão de acompanhá-lo na longa e aventurosa viagem.
Certo dia ele se organizou junto aos ministros e funcionários, repassando-lhes o governo interino de Montes Verdes. Seus fiéis amigos foram ali hospedados e com poder de opinião nos possíveis problemas.  O jovem rei equipou as mais reforçadas carruagens e, sob a sentinela da guarda real composta por cem homens fortemente armados rasgou a floresta, rumo a aldeia de Santo Ambrósio numa viagem que durou vinte e cinco dias.
Era manhazinha. A aldeia de Santo Ambrósio acordou como sempre, sob a barulhenta alvorada de pássaros e cantar de galos. Os pastores conduzindo ovelhas, vacas e cabras, as aldeãs indo felizes para os parreirais de uva. Então, a certa hora todos os moradores foram surpreendidos pelo burburinho da família real. A comitiva adentrou subitamente, destoando de tudo o que eles já haviam visto, assim passaram em revista pelos súditos daquele lugar. Ninguém sabia quem eram aquelas pessoas que nem sequer via-se o rosto. A aldeia, desacostumada a grandes eventos, veio em peso apreciar o acontecimento.
Após alguns minutos as carruagens pararam diante da casa onde o rei Petrônio morou. Ele desceu acompanhado de sua nova família. O senhor Expedito se preparava para sair para o trabalho, abriu a porta e ficou olhando os visitantes com grande admiração. Logo em seguida apareceram os seus irmãos. O rei Petrônio trajava as típicas roupas reais. O seu pai julgou tratar-se da passagem de algum rei próximo, mas não imaginava a razão da visita e sequer que era o seu filho.
Então se aproximou junto com os outros filhos, fizeram uma longa reverência. O senhor Expedito, ainda curvado, tomou a mão do rei para beijá-la, mas ele recusou e fez gesto para que ele se aprumasse, em seguida beijou a mão do pai e dos irmãos. Os curiosos ficaram estarrecidos, estranhando aquela inversão de papéis, pois jamais viram um rei beijar a mão de plebeus.
O velho Expedito olhava para o rei com uma fisionomia de perplexidade, certamente estranhando o apreço de um homem de tal estirpe para com eles. Por que o rei estranho externava tanto respeito? Era o que eles e a multidão pensava. Então o rei Petrônio falou:
- Esta é minha sogra, rainha Cassandra Celeste, esta é minha esposa, princesa Astrolábia, este é o meu filho, príncipe Nicolau... e eu sou Petrônio, papai... seu filho Petrônio... o senhor não me disse que o bom filho à casa torna?
FIM