ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A chegada dos despojos de Nísia Floresta a sua terra natal - vídeo 1

Nísia Floresta/RN - Em 2002, na condição de estudioso da vida e da obra de Nísia Floresta, idealizei um documentário sobre ela, construído com pessoas comuns da cidade onde nasceu essa ilustre intelectual, a qual me dá o prazer de termos o mesmo sangue. Dessa forma, tive 150 figurantes caracterizados com roupas da década de 1954, ano em que os despojos chegaram. Entendi que construindo um trabalho com essas características a importância seria maior, pois  os nativos viveriam a história real, portanto assimilariam muito melhor o nobre legado nisiaflorestense, transformando-se, dessa forma, em vetores. Desde 1992 divulgo esse importante nome através de palestras no RN e em outros estados, além de organização de exposições de acervo, seminários, conferências e afins. A gravação desse documentário foi um dos eventos mais marcantes que já fiz, pois, o que era para ser uma simples gravação, transformou-se num espetáculo, cujo povo participou em massa. Observe o momento em que o avião sobrevoa o set de filmagem; veja a emoção do povo. Também acho interessante quando Fídias – então com 3 anos - passa correndo, de chapéu, no meio das filmagens. 

A chegada dos despojos de Nísia Floresta a sua terra natal - vídeo 2

Nísia Floresta/RN - Em 2002, na condição de estudioso da vida e da obra de Nísia Floresta, idealizei um documentário sobre ela, construído com pessoas comuns da cidade onde nasceu essa ilustre intelectual, a qual me dá o prazer de termos o mesmo sangue. Dessa forma, tive 150 figurantes caracterizados com roupas da década de 1954, ano em que os despojos chegaram. Entendi que construindo um trabalho com essas características a importância seria maior, pois  os nativos viveriam a história real, portanto assimilariam muito melhor o nobre legado nisiaflorestense, transformando-se, dessa forma, em vetores. Desde 1992 divulgo esse importante nome através de palestras no RN e em outros estados, além de organização de exposições de acervo, seminários, conferências e afins. A gravação desse documentário foi um dos eventos mais marcantes que já fiz, pois, o que era para ser uma simples gravação, transformou-se num espetáculo, cujo povo participou em massa. Observe o momento em que o avião sobrevoa o set de filmagem; veja a emoção do povo. Também acho interessante quando Fídias – então com 3 anos - passa correndo, de chapéu, no meio das filmagens.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A PRAIA DE BÚZIOS JÁ FOI A "CASA DA MOEDA" DE ALGUNS PAÍSES AFRICANOS

Você sabia que na época do descobrimento do Brasil os índios não andavam pela praia de Búzios? Sabe por quê? Pela quantidade de búzios espalhados por toda a sua extensão. O vaivem das águas trazendo novos búzios e arrastando os que já estavam ali, provocavam um quebra-quebra sem fim. Quem passava perto ouvia aquele barulho de "louça" se quebrando. Esse fenômeno fazia com que as areias escondessem pedaços que mais pareciam navalhas. 
Só louco para andar naquela praia.
Em 1591, Anthony Knivet, um aventureiro inglês deixou a Inglaterra a bordo de um navio pirata comandado por Thomas Cavendish. No trajeto, pela costa brasileira, Knivet foi abandonado entre os índios canibais e colonos selvagens, e "comeu o pão que o diabo amassou". Sua história é digna de filme, pois os episódios vivenciados por ele são inacreditáveis. Bem, mas por que estou contando essa história, se o assunto em tese é sobre os búzios de Búzios?
Vamos por parte. É que, tendo relido essa fascinante história, deparei-me com um trecho no qual Knivet (que esteve no Rio Grande do Norte) explica uma frase em dialeto angolano para ser usada quando se quer comprar pão "Tala cuna aven tumbula gimbo", que significa "Dê-me um pouco de pão, eis o dinheiro".
Segundo ele, "seu dinheiro, chamado gullginbo, é a concha de um crustáceo que encontram na praia, que os portugueses levam em quantidade do Brasil para Angola".
Há também uma citação de frei Vicente de Salvador "Há no rio das Caravelas muito zimbo, dinheiro de Angola, que são buziozinhos muito miúdos de que levam pipas cheias, e trazem por elas navios de negros".
Por essa razão lembrei-me de Câmara Cascudo, quando em seu História do Rio Grande do Norte (1955), ao se referir à praia de Búzios, em Nísia Floresta, diz: "O Pôrto de Búzios, praia abandonada, foi muito citada nos documentos da primeira metade so déc. XVI pela abundância de búzios que eram procurados, valendo dinheiro para permutas comerciais (Artur Nehl Neiva, PROVENIÊNCIA DAS PRIMEIRAS LEVAS DE ESCRAVOS AFRICANOS, Anais do IV Congresso de História Nacional, vol. IV, Rio de Janeiro, 1950). Na Índia, China, levados para a África pelos traficantes árabes, o búzio, Cypraea moneta, Linneu (moneta, moeda) valia dinheiro corrente e comum, denominado Cauri. Os escravos vindos co Congo para o Brasil diziam njimbu ao búzio, provindo a popular sinonímia de gimbo aplicada ao dinheiro em moeda. Jimbo ou zimbo divulgou-se facilmente entre os comerciantes portugueses na África. No Brasil há outras espécies, não sendo encontrada a espécie cypraea moneta e sim a exanthema. João de Barros, o nosso Donatário, em março de 1564 obtinha do Rei autorização para mandar buscar na Índia trezentos quintais de búzios. Indígenas usavam o búzio como ornamento precioso e para troca. Stradeli conta o ciúme dos indígenas amazonenses pelos seus colares de conchas, recusando a permuta com espingardas de dois canos e munição. Na Bahia cita-se uma Praia do Zimbo ao norte de Itapoã. A nossa praia e antes Porto de Búzios era lugar de colheita. João de Barros arrendava-o por quinhentos cruzados e dava autorização difícil. Recebia mesmo, pela mão do seu procurador Antonio Pinheiro, residente em Igaraçu, os búzios como pagamento das anuidades do arrendamento ou da licença para ir apanhá-los. Já não os encontrei quando visitei a deserta praia dos Búzios".
Essas referências são muito curiosas, pois permitem-nos saber o quanto valia uma peça que para nós era insignificante, exceto por sua beleza (embora que nem fosse vista assim). Na realidade, a praia de Búzios funcionava como a "Casa da Moeda" de países da África. Observe que os nossos búzios tinham o peso do dólar, vamos dizer assim, pois não existiam em outros lugares. Tanto é que eram tidos como "dinheiro vivo", ou seja moeda. Veja que frei Vicente diz que as caravelas saiam daqui pesadas de Búzios e voltavam pesadas de escravos, ou seja, os escravos eram comprados com búzios. Eis mais um episódio interessante para o estudante de Nísia Floresta.
Ao contar essa história interessante, pensei sobre a questão da depredação da natureza. Vejam que é prática antiga. Não sou especialista e nem posso afirmar, mas os búzios, que apareciam "a torto e a direita" pela praia, desapareceram. Estariam em extinção?! Hoje, quem quer búzio (se é que se pode tê-lo), deve encomendar aos pescadores. Em 1992, lembro-me de uma senhora, por nome de Primininha (vejam que nome curioso). Eu a conheci através de Magna Vitória, de Genipapeiro. Ela enviuvara recentemente de um pescador que marcou época por seus mergulhos. Era personagem respeitadíssimo em Pirangi. Possuía barcos de pesca e fornecia lagosta para os principais restaurantes locais. Essa senhora doou-me um belíssimo Búzio, o qual mandei para a minha terra.Como lá não existe mar, é objeto de atração. Com certeza no mar de Búzios continuam nascendo os famosos búzios, mas ainda não são o bastante para serem lançados à praia como antes. Será que um dia veremos essa cena?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Tempo



TEMPO

Tempo. Tempo. Tempo. Dia desses pensava sobre o tempo. Vivemos em função dele, numa proporção desenfreada, e não das coisas fundamentais da vida. Não temos tempo para parar diante das lojas e contemplar as prateleiras, pois precisamos chegar correndo ao trabalho.
Quando retornamos do trabalho - à tardinha - não podemos novamente olhar as prateleiras, pois precisamos chegar correndo em casa.
No final de semana não é possível ir à praia. Temos que concluir afazeres domésticos ou profissionais que ficaram pendentes... e assim estamos sempre correndo... correndo... correndo, preocupados com o tempo.
Pior: quase sempre não concluímos o que para ser feito para nós. Tudo o que é dos outros, damos conta, mas o que é nosso deixamos para depois.
O poema que começamos a escrever fica nas gavetas, amarelando. Nossos projetos pessoais ficam na mente, em stand by.
Vivemos atropelados pelo tempo. Sempre.
Parecemos o coelho da história de "Alice no país das maravilhas". O bichinho vivia correndo e olhando o relógio, loucamente apressado, dizendo: "estou atrasado!", "estou com pressa!". Fazia tudo de forma atropelada.
Enquanto isso, Alice encontra um gato esparramado num galho de árvore. Seu corpo aparece e desaparece como mágica. Às vezes permanece apenas o seu sorriso em meia lua, como de debochasse dos apressados.
O gato seria o tempo disfarçado? Sua calma estaria sorrindo de nós? Ele também desaparece, deixando apenas a cauda, como fosse uma cobra. A mansidão rastejante da cobra seria um escárnio à pressa humana?
Logo, Alice lhe indaga, apressadamente: 
- "essa estrada vai para onde?" 
O gato, pleno de paciência e serenidade, responde com outra pergunta:
- "para onde você quer ir?"
Eufórica, ela replica:
- "Não sei para onde quero ir, pois estou meio perdida". 
Ouvindo aquela resposta meio louca, o gato sentencia com paciência de monge:
- "Para aqueles que não sabem para onde ir, qualquer estrada serve".
Parece que somos um pouco esse coelho e essa Alice sem tempo para nada. A todo momento encontramos um gato que também nos diz; "Para aqueles que não sabem para onde ir, qualquer estrada serve".
Quando as coisas são para nós, não encontramos a estrada. Sabemos o caminho quando as coisas são para os outros.
Estamos sem tempo para sermos gente. Parafraseando Chaplin, parecemos máquinas... sei lá!
As estradas estão diante de nós, e nós, sem tempo, sequer as enxergamos.
Que bom irmos à praia, sentirmos a areia e as ondas do mar?
Que bom pegarmos uma estrada de terra, a pé ou de bicicleta, paramos naquela ponte, escutarmos o murmúrio do rio, olharmos os pássaros, as formigas em carreira, colhermos flores silvestres...
Que bom pularmos naquele rio que nos parece tão relaxante?
Que bom visitarmos aquele tio idoso que há tempo não o vimos (ele pode não estar lá amanhã).
Que bom plantarmos aquele jardim que todo dia prometemos a nós mesmos iniciá-lo.
Que bom fazermos aquele arroz doce que adoramos e o postergamos a todo instante?
Que bom concluirmos a leitura daquele livro?
Que bom concluirmos aquele texto que o pretendemos livro, mas parado está há dez anos?
Que bom separamos aquelas roupas usadas para doarmos?
Que bom almoçarmos com a nossa família, em plena segunda-feira, e sem pressa?
Tudo passa!
O tempo fica. Não podemos ser escravos dele. 
“Essa estrada vai para onde?”:
Percebeu que as estradas, os caminhos, as veredas estão diante dos nossos narizes?
Busquemos caminhos que nos levem a nós, entremos dentro de nós, primeiramente. Encontremo-nos.
Busquemos estradas que nos levem a nossa família, aos lugares que deixamos de lado o tempo todo.
Busquemos lugares enxergados pelo coração.
Se continuarmos com essa pressa desabalada, não viveremos a nossa vida. Viveremos as vidas dos outros e das coisas. Vegetaremos como escravos do tempo.
E aquele filho que me ama e pede para olharmos o riacho todos os dias?
O neto que pede para fazermos brigadeiro há mais de dois anos?
Isso é desviver.
Isso é morte!
É morte porque não viemos para cá cuidar de papéis, máquinas e coisas.
Viemos cuidar e sermos cuidados por pessoas.
Que tal vivermos!
Nem que seja algumas vezes por semana? 
Que tal vivermos até o dia de morrermos?
Tem que ser agora, senão tudo passará, inclusive nossa família, nossos amigos. 
O tempo nos levará tudo, inclusive a nós.
Sobrarão lembranças amargas para os que ficarem... seremos meras lembranças esquecidas com o tempo. LUÍS CARLOS FREIRE – 1996 


POLÍTIPO - ALUÍSIO AZEVEDO

Polítipo - Aluísio Azevedo

Suicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa.
Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exigüidade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das cousas cá da terra.
Não conheci ainda criatura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos, porém, na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.
O livro era excelente, mas a encadernação detestável.
Imagine-se um homenzinho de cinco pés de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma idéia do tipo do meu malogrado amigo.
Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo, cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança.
Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho vítima de alguma violência; ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita.
E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.
Outro doloroso caiporismo dos seus, era o de parecer-se com todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, amanuense de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes.
Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao. certo. A circunstância da sua falta absoluta, de barba dava-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem, como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas, olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo era quase um bonito moço, porém, de baixo para cima era simplesmente horrível.
Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas, com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até às orelhas e o chapéu até à gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário; e, quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem pôr, um nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.
Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano, lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou comovido:
– Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada!
De outra vez quando ainda a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajos de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor com esta singularíssima frase:
– Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?… E quer ver se me engana com essas calças?
Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia despedido de casa.
Não se dava conflito de rua, em que, passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão, sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palmadas no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade.
Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo ver nele um colega desertor.
E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.
Uma existência impossível!
Se se achava numa repartição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:
– Garção! Há meia hora que reclamo que me sirva.
Se ia provar um paletó à loja do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pareciam com Boaventura.
Num clube familiar, quando o infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão.
– Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?!
O mísero voltara-se inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado àqueles enganos.
Que vida!
Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar.
No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles.
Havia choro a valer e, entre o clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases:
– Meu filho morto! Meu filho morto!
– Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem!
– Ó senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca!
– Mas não me engano! é o meu caixeiro!
– Dir-se-ia que este moço era um meu antigo companheiro de bilhar!…
– E eu aposto como é um velho, que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro!
– Qual velho, o que! Conheço este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!
– Estudante! Ora muito obrigado! há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era médico velho!
– Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a “Gazeta” à casa. É que a morte alterou–lhe as feições.
– Meu pai!
– O Bernardino!
– Olha! Meu padrinho!
– Jesus! Este é meu tio José!
– Coitado do padre Rocha!
Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa!
E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.
Aluísio Azevedo

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

GRUPO FOLCLÓRICO ISABEL GONDIM - 2001 - PORTO


DESPEDIDA DO PADRE JOACI - 2011

Padre Joaci - esse sacerdote - na minha insignificante opinião - marcou (espiritualmente) Nísia Floresta. Não sei traduzir em palavras, mas sentia uma leveza, uma profundidade humana inexplicável... coisa rara. Ele emanava uma paz, uma superioridade espiritual incompreensível. Afora esse detalhe, possuía uma vasta cultura e discorria em diversos idiomas. 

MENSAGEM

A ÁFRICA NO CAMINHO DE UM PADRE – NO DIA DA SAUDADE”

Hoje é oficialmente o DIA DA SAUDADE, conforme o calendário de datas comemorativas.
Há muitos e muitos anos diversas nações européias e até mesmo de outros Continentes invadiram a África e roubavam pessoas, como se elas fossem mercadorias. Esses invasores, dentre eles os portugueses, ignoravam que os africanos pertenciam a uma civilização adiantada, tal qual a européia, como nos diz o Irmão Marista Eduardo D’Amorim, em seu livro “África: Essa mãe quase desconhecida”, o qual estudou essa nação.
Há quase 500 anos o Brasil recebeu milhares de africanos, trazidos pelos portugueses, os quais eram considerados quase animais irracionais, pois propagavam que os negros não tinham alma, não pensavam e eram quase bichos.
Esses europeus eram tão truculentos que sequer imaginavam que alguns africanos que eles arrancaram à força da África, eram Reis, Rainhas e Princesas africanos, os quais possuíam uma cultura diferente da deles, mas adiantada e organizada.
O tempo passou e a África sofreu sucessivos saques humanos. Muitos europeus iam para a África pelo simples prazer de caçar.
Eles matavam os animais e deixavam no local, muitas vezes sequer retirando o couro, o marfim ou outra parte dos animais, conforme ocorreu até pouco tempo, onde quase dizimaram os elefantes (para retirar o marfim), os tigres, leopardos, leões e as onças (para tirar dentes e pele).
A África permaneceu muito tempo injustiçada e vista de forma preconceituosa. Alguns países desse Continente conseguiram superar as seqüelas dessas e outras injustiças que sofreram, como também guerras e revoluções. Eles levantaram a cabeça e se reergueram. No entanto alguns países africanos vivem atualmente abaixo da linha da pobreza. São miseráveis, sem casa, sem trabalho e sem comida.
Muitos são aidéticos e, além de morrerem de fome, morrem em conseqüência dessa terrível doença. Se não fosse alguns órgãos e instituições de direitos humanos e religiosos, alguns países africanos estariam em situação pior. Quem sabe até nações inteiras dizimadas.
No que se refere a interferência da Igreja Católica naquele país, o objetivo, além de levar-lhes o alimento da palavra de Deus, educação, noções de saúde, higiene e cidadania, é também servir de instrumento de organização para distribuição democrática de alimentos, pois é grande o números de africanos que morrem diariamente de fome.
É para esse Continente que estamos enviando, hoje, dia 30 de janeiro de 2011, coincidentemente o DIA DA SAUDADE, o nosso amado Padre Joacir, que tanto contribuiu para a formação cristã do povo de Nísia Floresta.
A impressão que se dá, não fosse uma feliz coincidência, é que escolherem essa data para configurar que realmente a saudade será grande. Será impossível não sentir saudade de um pastor que semeou a palavra de Deus de uma forma especial.
Há muito que nós paroquianos precisávamos sentir a nossa fé aquecida. E isso ocorreu de forma natural, com a chegada do padre Joacir, um catarinense despojado, de farta cabeleira mesclada entre fios negros e brancos, homem simples, de voz mansa, dono de um estilo muito seu de presidir uma celebração: movimentos rápidos, gestos peculiares, homilia clara, objetiva, mas forte e tocante.
Tivemos a graça de tê-lo, primeiramente com o padre Inácio, depois com o padre Lenilson, e depois com o padre Fábio.
Nunca a igreja de Nísia Floresta esteve tão bem servida: Três pastores de Deus.
No meio de nós o Frei Joacir passou...............................................(colocar aqui o tempo) e muito nos ensinou. Mas dentre todos os ensinamentos, o que mais nos tocou foi um ensinamento que fluiu por excelência, sem que o próprio padre percebesse: a simplicidade.
O Frei Joacir talvez pense que não sabemos, mas somos conhecedores da sua vasta intelectualidade, das cátedras que ocupou enquanto mestre de renomados e famosos padres, enquanto aparentemente permanece desconhecido, no silêncio de suas orações, guiado por Deus. Preparado por Deus, pois Ele quer assim.
Hoje, dia 30 de janeiro de 2011, Deus fez como fizeram os europeus há quase 500 anos, mas de forma inversa e com sentido diferente: entrou em Nísia Floresta e arrancou de nós o nosso pastor, o qual fará viagem inversa.
Não em navio negreiro.
Nem mesmo num avião.
Mas nas mãos de Deus, pois Ele o quer na África.
Muito diferente do que fizeram os europeus há quase 500 anos, Deus está arrancando do Brasil e levando para a África não um escravo. Mas um pastor. Um homem de Deus.
Na África ele não será escravizado, nem escravizará. Pelo contrário: somará a outros religiosos da Santa Igreja Católica para quebrar os grilhões que fazem dos nossos irmãos africanos escravos do abandono, do desamor e da falta de dignidade em toda a sua plenitude.
Tudo é do Pai. Tudo é como Deus quer.
Deus sentiu que o trabalho do Padre Joacir foi cumprido em Nísia Floresta e veio buscá-lo para que lá, junto aos nossos irmãos africanos, ele possa desenvolver trabalho semelhante.
Sabemos que precisamos de homens como o Frei Joacir em Nísia Floresta, mas reconhecemos que somos ricos material e espiritualmente se comparados ao nossos irmãos africanos que muito mais necessitam de um pastor como ele.
Poderíamos sentir muita tristeza e até mesmo chorar, se não tivéssemos a certeza de que o Frei Joacir está sendo fruto dos desígnios de Deus.
Olhemos para a África e reconheçamos o clamor daquele povo.
Olhemos para a África e sintamos felicidade por enviarmos pastor de tamanho quilate.
Olhemos para o Frei Joacir e desejemos que, na África, ele continue alimentando almas com o que de melhor pode sair de um pastor: O ENSINAMENTO DAS COISAS DE DEUS.
A saudade será grande, mas muito maior é a felicidade de sabermos que Deus o envia para quem mais precisa.
Estamos curados. E as feridas da África estão abertas e precisam dos santos remédios.
Obrigado Frei Joacir por tudo o que fizeste por Nísia Floresta.
A vossa estadia curta entre nós foi bastante para aprendermos muito.
Por sermos humanos, poderemos sentir filetes de lágrimas descerem de nossos olhos. Elas são fruto das coisas humanas, as quais, diferentes das Divinas, nos faz frágeis e precisam ser perdoadas.
O contexto do hoje e do agora nos emociona, mas, ao mesmo tempo nos enche de felicidade, pois, como diz o próprio Deus: a Messe é grande e precisa de operários.
A África possui mais de 800 milhões de habitantes, enquanto o Brasil possui apenas 190 milhões. A África possui 30 milhões de metros quadrados, enquanto o Brasil possui apenas 8 milhões. A África possui 2000 idiomas, enquanto o Brasil possui apenas um. A África possui 50 países, enquanto o continente sul-americano possui apenas 13, dentre eles, o Brasil.
É para lá que vai o nosso amado frei Joaci,
Resta-nos dizer-lhe: Deus o abençoe!

Luís Carlos Freire


Nísia Floresta, 30 de janeiro de 2011 
(mensagem lida por Ana Cristina)