ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Cemitério de Cururu (Campo de Santana) - Políticas Públicas de Turismo e Participação dos Nativos


            Cemitério de Cururu (Campo de Santana) - Políticas Públicas de Turismo e Participação dos Nativos
 
          No dia que estive no antigo povoado do Cururu, "Geto", o jovem senhor que me acompanhou, informou-me que dia desses um rapaz subiu com uma motocicleta a mesma vereda que nos servimos para chegar até o cemitério daquela localidade, situado no ponto mais alto de Campo de Santana.
            Ele narrou o episódio admirando a destreza do piloto, pois, como escrevi no texto anterior, o caminho é muito íngreme e permeado de cajueiros, obstáculos quase intransponíveis por uma pessoa a pé, imagine uma moto.
            "Geto", que é agricultor e trabalha na localidade, disse que eventualmente ouve o ronco dos motores em outros pontos de dunas, assinalando a presença de praticantes de esportes. O objetivo deste texto é exatamente provocar reflexões sobre o trânsito de veículos nessa localidade.
            É muito importante o incentivo às práticas esportivas, mas, mais importante é construir previamente políticas públicas no âmbito das secretarias municipais de esporte, turismo e meio ambiente locais. E, principal: os moradores de Campo de Santana devem ser chamados a participar de tal projeto. Se isso “virar moda”, as consequências negativas virão logo em seguida.

            Observei que boa parte dos nativos, por serem pessoas simples - comporta-se com muita ingenuidade quando veem veículos transitando nas dunas (embora não seja regra, pois "Geto" manifestou preocupação). Essa ingenuidade é preocupante, pois os nativos ficam olhando os motoqueiros ou os motoristas de "bugues" com uma espécie de contemplação. Há passividade. Ninguém os aborda para, educadamente dizer que não é adequado percorrer aquela área com qualquer tipo de veículo. Assim faziam, em 1500, os povos indígenas quando os europeus apareceram por aqui saqueando tudo. A presença desses "seres extraterrestres" parece promover um espetáculo para quem está habituado apenas a ouvir o canto dos pássaros e o farfalhar das palhas de coqueiro.
            Precisamos reconhecer que é inviável promover o sobe e desce nessas dunas sem amenizar a sua depredação. Só as pisadas humanas já são o bastante para forçar a descida de suas areias, imagine de motos e, pior, de veículos "bugues". Foi por esse motivo que, em Natal, proibiram esse tipo de trânsito nas areias desse belo ponto turístico.
            Na realidade falta um projeto de turismo para o local. Desse modo os nativos seriam despertados a interagir com os turistas e corrigir situações de desrespeito às regras de conservação do local. Haveria mais legitimidade na abordagem. A ingenuidade dos seus habitantes é até compreensível, pois os mesmos não foram despertados para isso. A partir do momento que existir algo bem elaborado, cria-se o respeito. O olhar do turista (e do nativo ingênuo) muda.
            Não sou especialista, mas na minha insignificante opinião deveria-se fazer uma escadaria rústica - com troncos de coqueiros colocados horizontalmente, fazendo as vezes de escadaria. Para isso, bastaria-se podar as ramagens finas dos cajueiros, sem cortar seus galhos grossos, permitindo a subida apenas de pessoas. Quem chegasse com motos, estacionaria para ter acesso ao cemitério.
            Desde que o homem surgiu no planeta Terra usa de técnica parecida para plantar suas roças sem sofrem erosões e - obviamente - para subir as regiões montanhosas. Todas permanecem intactas até o presente. No caso eles faziam uma espécie de muros de pedra ao longo da área, numa sucessão interminável, até chegar a sua base.

            Quando eu caminhava no sopé da duna onde está fincado o cemitério, passei por uma porteira, à esquerda, já chegando à referida vereda. Vi uma cena esdrúxula. A cancela traz uma placa com a seguinte informação: "Preserve a natureza".
            Poderia não ser esquisito se dentro desse terreno não houvesse uma cratera imensa cavada na base de uma duna. Dela saíram algumas carrocerias cheias de areia para alguma obra. Só espero que tal absurdo não seja uma iniciativa do poder público local - não é possível! Tanto lugar para retirar areia e escolher logo a base de uma duna. Pior: num lugar paradisíaco.
Detalhe da antiga Capela do Cururu
            Só para raciocinarmos melhor: observe que o cemitério do Cururu é murado. Isso reforçou ainda mais a integridade do local, pois impede que a ação do vento arrie aos poucos as suas areias, fragilizando os túmulos. Há - logicamente - a barreira natural formada pela vegetação nativa, que "freia" o vento, mas o muro reforça a preservação do local.
            O leitor cuidadoso poderá pensar que estou sendo contraditório, pois no texto que escrevi sobre o Cemitério do Cururu, externei a minha revolta com o estado de abandono do local, no qual se encontram belos túmulos. Mas estado crítico. Um deles, inclusive, tombou quase inteiro.

            O estado caótico dos túmulos que restaram decorre da própria antiguidade. São peças esquecidas no tempo, como se nem parentes restassem para o devido zelo. O reboco de dois deles se desprendeu totalmente. Jaz seu esqueleto de tijolões. Vê-se um leve deslizamento da areia do alicerce, mas nada que um breve reparo não resolva. Um dos mais bonitos foi literalmente empurrado por um cajueiro nativo que invadiu a área com a intenção de retomar o local.
            Curiosamente veem-se muitos túmulos com suas cruzes quase soterradas pelas areias. Esse fenômeno ocorre apenas com os que são desprovidos de alguma construção de alvenaria sobre eles, como mostram as fotos. Nesse caso a ação do vento, ao invés de varrer as areias, avoluma-se mais.

            Finalizando, fica este texto como um convite para que Nísia Floresta tenha olhos civilizados para esse tesouro de valor incalculável. Quiçá o poder público local destine parte do seu portentoso IPTU para um projeto de turismo, junto à secretaria específica e coligadas, como às de educação, cultura e meio ambiente. Com certeza não faltará apoio do MINC.
            O povoado do Cururu precisa de uma estrutura adequada para acolher o turista. Nela devem existir ambientes de gastronomia (limitado, pois se abrir para todos vira bagunça), banheiros limpos e confortáveis, lojinhas para venda de artesanato, comidas e bebidas típicas. O acesso deve ser melhorado com o mínimo de dano possível. 
Minha mão virou 'mão de criança'. Usei-a para que o leitor percebesse o tamanho incomum do tijolo, digno se ser estudado.
Tudo deve ser bem sinalizado a partir da pista de entrada de Campo de Santana. Toda a área deve ser servida de lixeiras e serviço regular de coleta. Somado a isso o turista deve contar com guias de turismo muito bem capacitados, guias turísticos e guardas para possíveis intervenções. As instituições de educação tem papel fundamental na construção de um olhar civilizado para esse e outros espaços locais. Essa tarefa pertence ao poder público.
"Geto", o jovem senhor que gentilmente me acompanhou.
            Em primeiro lugar o povo nisiaflorestense precisa conhecer (e reconhecer) o cemitério do Cururu e as ruínas da velha capela como um monumento de história e memória. Na realidade toda essa área é um complexo turístico formidável, pois está emoldurada por um cenário natural de rara beleza. Um bom projeto turístico deve ser elaborado. Depois disso, que o lugar seja de livre acesso aos turistas e a quem quer que seja. Ficar como está é prejuízo para a história e a economia local.

Leia mais sobre Cururu; clique nos sites abaixo:










segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Cemitério de Cururu - Retalhos da História de Nísia Floresta



Um dos túmulos engolidos pelos cajueiros, os quais reivindicam a propriedade.

     CEMITÉRIO DE CURURU - RETALHOS DA HISTÓRIA DE NÍSIA FLORESTA
 
     Como sabemos, o povoado do Cururu é muito antigo. Há quem suponha remontar à época do surgimento do centro de Papari. Infelizmente, restam apenas os alicerces das poucas casas de alvenaria ali edificadas e as ruínas de uma capela, haja vista a famosa “cheia de 74”. Mas o seu velho cemitério, plantado na duna mais alta da região, resiste ao tempo, revelando uma antiguidade surpreendente. OBS. Sobre a história do povoado Cururu o leitor encontra maiores detalhes nesse mesmo blog. Clique nos links no final deste texto.
         Na realidade o que me move a escrever sobre esse lugar - no momento - é mais a preocupação com o seu processo de ruína do que o necessário enveredamento por sua história. Nem por isso ela estará totalmente ausente. 
Tenho anotações colhidas em 1993, com antigos moradores, as quais ficarão para futuros textos, pois abordam o referido povoado de forma abrangente. O presente texto promete apenas instigar reflexões sobre esse detalhe da história do município de Nísia Floresta, despertando interesse e zelo por seu patrimônio, atitude esta que cabe às autoridades em primeiro lugar e ao povo.
         Os nisiaflorestenses, principalmente os professores, estudantes e em especial as instituições que trabalham com cultura e turismo, devem conhecer e reconhecer os seus espaços de história e memória. Todos devem se dar conta que a história pertence a todos, e esse pertencimento prediz zelo, garantindo às futuras gerações o usufruto de seus bens. Ignorá-los ou negá-los significa endossar o seu depredamento.
         Ontem, 15.11.15, conversando com Daniela Calixto, proprietária de uma escola de balé neste município - e que encontra-se montando um espetáculo de balé com a temática voltada para o personagem Nísia Floresta e o município - ela disse-me que buscou todas as informações que precisava no meu blog, numa sucessão de textos que escrevi sobre o Cururu, pois com exceção ao que escrevi, não há mais nada na internet que aborde o tema.
         É justamente esse o objetivo daquele e de outros textos, ou seja, informar, despertar o interesse das pessoas e servir como fonte de pesquisa e reflexão para professores e alunos.
         Mas continuando o assunto. Tendo ido ontem ao Cururu, ciceroneado por "Geto" (leia-se com acento no 'e') um nativo de 44 anos, enveredei-me pela aura histórica desse lugar. Leia o texto abaixo e compreenderá:

"Como sabemos, o povoado do Cururu é muito antigo. Há quem suponha remontar à época do surgimento do centro de Papari. Infelizmente, restam apenas os alicerces das poucas casas de alvenaria e as ruínas de uma capela, haja vista a famosa “cheia de 74”. Mas o seu velho cemitério, plantado na duna mais alta da região, resiste ao tempo, revelando uma antiguidade surpreendente.
        Tendo ido ao cemitério de Cururu, enveredei-me por um caminho emoldurado de mata nativa, rasteira, cujos cajueiros predominam. Seus frutos, miúdos, são tão doces quanto o aconchego do velho povoado. O cemiério dorme, esquecido, no pináculo do morro. Seus túmulos foram tomados por musgo seco, emprestando-lhes uma fisionomia assombrosa. A subida, íngreme, é permeada de arbustos e árvores nativas. Os galhos, retorcidos, sobraçam uns aos outros, ora serpenteando no chão, ora engolidos pela areia alva como um morro de açucar. Ora se equilibram altos e tortuosos. Por vezes servem de corrimão para vencer a subida cansativa. Há uma sucessão de dunas.
         O chão de areia fofa, qual uma "farofa" de folhas e galhos apodrecidos - triturados -, engole os pés do caminhante. As matas que ladeiam a vereda guardam túneis de garrancheiras quase intransponíveis, cuja luz do sol, mal consegue penetrar. Vê-se nelas um tapete intocado, dourado de folhas novas, recém-caídas. Vez por outra surgem moitas de abacaxis silvestres.
         O cemitério jaz no ponto mais alto da região do velho povoado, permitindo um raio de visão cuja linha do horizonte é o limite. A visão é espetacular. Paradisíaca. Nada lembra as mãos do homem. Não há casas nem construção alguma que macule o cenário natural.
O cemitério do Cururu é um mirante fincado num local privilegiado. São sucessões de paisagens que se desencadeiam ao longo de um giro de 360 graus. Cada ponto, cada detalhe parece dizer: “aqui está as mãos de Deus”. Não há como não se sentir dentro de uma tela pintada por um gênio. É indescritível. Impossível transformar em palavras o que se vê e sente no povoado de Cururu.
         Desse pino, desenrola-se um tapete infindável de mata nativa, revestindo os contornos das dunas. Ora se sobressai uma nuança verde mais intensa ou mais clara, revelando as árvores mais altas ou uma clareira natural, branca como neve, numa sucessão de dunas.
         É nesse ponto alto que durante séculos foram sepultados os corpos dos mortos do Cururu. A subida é cansativa. Imagine o cortejo de um enterro, ou um dia de finados. Supostamente os idosos chegavam ofegantes ao topo.
         Todo esse encantamento se refere unicamente à visão panorâmica que se perde de vista, pois, quando o visitante se volta para um palmo além do nariz a visão é desoladora. O processo de ruína do cemitério é quase irreversível. Foi durante essa observação que o cemitério de Cururu conversou comigo. Pediu socorro. Vejam só! Um cemitério pedir socorro. Mas foi isso o que ocorreu.
         Fiquei perplexo quando vi três túmulos centenários, de arquiteturas singulares (os únicos que sobraram) em estado caótico. Os cajueiros reivindicam a sua propriedade, devorando-os como um ser fantástico. Suas galhadas serpenteiam o velho muro, entrelaçando-se com a alvenaria dos túmulos, abraçlando-o com sua força silenciosa, mas descomunal.
Um dos mais belos e resistentes jazigos ruiu e já se encontra sufocado pelas galhadas robustas, que lembram gigantescas serpentes ou braços hercúleos. Tenho impressão que não restaram parentes desses mortos, pois se fosse diferente, não estariam à mercê da depredação natural.
Os túmulos que resistem, localizados no centro do “campo santo”, embora agonizantes, trazem os seus alicerces à mostra. A ação do tempo cavoucou suas bases. Dá-se a impressão de que em breve será mais uma ruína. Há relatos de que velhas cruzes de metal, feitas com riqueza de detalhes, foram levadas por pessoas estranhas que passaram por ali, “desbravando” a região com seus motores possantes. Levaram como souvenir.
         Embora o cemitério encontra-se quase abandonado, alguns moradores ainda o visitam para prestar culto aos mortos. Mesmo após a “cheia de 1974” alguns nativos não deixaram de fazer sepultamentos ali. Só mesmo nos anos 1980  os moradores de Campo de Santana foram se dando conta de que o cemitério novo lhes pertencia realmente. A distância e a dificuldade de acesso parece ter-lhes ajudado nessa escolha. Mas foi difícel aquela espécie de desapego e cumplicidade.
Lendo as inscrições em baixo relevo, gravadas nas cruzes de cimento do velho Cururu se constata que alguns sepultamentos datam de 1976; dois anos após a aterrorizante “cheia”. Restam também algumas placas de alumínio com informações típicas de um túmulo: nome completo, datas de nascimento e morte.
         O fato de ter sido construído em lugar tão alto parece revelar uma explicação que nos remete a uma concepção cristã e mística. Quem está no sopé do Cururu - há trezentos metros, exatamente na estradinha próxima ao bueiro - e olha com atenção para o topo da duna, em direção ao sul, se vê as ponteiras de dois túmulos mais altos, destoando da paisagem natural.
Vistos do sopé do morro esses túmulos parecem tocar as nuvens. Não é difícil imaginar ter sido intenção dos antepassados deixar os seus mortos em contato direto com o céu. Creio que essa impressão acalentava-os diante do sofrimento com a perda de um ente querido.
         Ao mesmo tempo subir tão alto, carregando um morto numa rede parece dar foros de penitência. É como se a caminhada cansativa e pesarosa fosse o sinal de retribuição ao pai, a mãe, e aos avós por tudo o que eles fizeram por quem ficou. Levá-los ao ponto mais alto da localidade - para a derradeira morada - era a oportunidade de rezar e repensar sobre a sua relação com o morto e com a morte.
O enterro consistia na oportunidade de agradecer a Deus e pedir que Ele recebesse seus mortos no Paraíso. Quem participava dessa “via crucis” sabia que um dia percorreria aquela mesma vereda, não mais conduzindo a rede, mas levado nela. E assim, fazendo jus à única certeza que se tem nessa vida, as coisas se seguiam numa sucessão interminável.
         Seja como for, sepultar um morto no Cururu de antigamente era experimentar uma indescritível comunhão com Deus. A aura do lugar pareceu oportunizar um momento singular de oração. Penso na sensação final de um enterro ao pôr do sol, tendo o morto descido os "sete palmos". Não dá para descrever. É muito forte e misterioso. A tarde de brisa agradável, pincelada pela tonalidade dourada do sol já desmaiando, certamente instigava a contrição dos participantes do féretro.
         Para quem sabe exatamente o significado da morte, creio que a descida desse pináculo ocasionava uma sensação de leveza incomum. Por vezes pensariam estar levitando até sentir o sopé da duna. Creio que nesse momento se davam conta de que a vida continuava no velho Cururu.
         A construção de um cemitério no local mais alto do Cururu nos convida também a outras reflexões. Teria sido pelo temor de uma enchente? Se sim, poderíamos supor que os nativos profetizaram a cheia de 74, a qual colocou todo mundo para sair às pressas e nunca mais voltar. Existiriam profetas entre os habitantes do velho povoado? Dizem que os idosos trazem consigo a sabedoria. Teria sido isso?
         Contam que o povoado de Cururu "encheu do dia pra noite". Se os nativos não tivessem sido rápidos teriam se afogado, pois a água cobriu as casas em poucas horas. Foi uma sucessão de "estouro" de barragens quilômetros acima. Os que tinham canoas se serviram delas imediatamente, mas os que não as possuíam, correram para o alto para preservar a própria vida. Ninguém morreu.
As pessoas mais antigas olham para a vida e a natureza de maneira destoante da nossa. Embora muitas vezes recebam o deboche dos mais novos, são muito sábias, observadoras. Elas tinham consciência que Cururu estava numa "bacia", numa depressão. Sabiam da existência de muita água  represada nas áreas mais altas e que, mesmo uma chuva muito forte poderia inundá-la.
         Contam que por anos a fio as estradas e veredas que ligavam o Cururu às partes mais altas - para onde as pessoas transitavam até o centro de Papari ou até mesmo em direção a Natal - ficavam submersas. O deslocamento das pessoas era feito em canoas. A experiência de ficar ilhado não era uma novidade. Mas nada se compara a “cheia de 74”.
         Desse modo, construir um cemitério num local tão alto e de difícil acesso, dava a certeza de que jamais as águas o tocariam. Desse modo os antigos construíram um cemitério na "divisa com o céu".
         Um cemitério não pertence apenas a um município, e de certo modo, nem os próprios túmulos são propriedades exclusivas de seus donos. Cemitérios pertencem a todos nós e seus túmulos também, principalmente quando se tornam históricos.

A partir do momento que um bem passa a ter uma significação sentimental, estimativa, histórica, mitológica, lendária etc., automaticamente passa a constituir em patrimônio de todos – e deve ser preservado - portanto o cemitério de Cururu pertence a todos, inclusive a você. Cabe às autoridades se vestirem dessa consciência".

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

MULHERES ESPECIAIS: LIVRO PÓSTUMO DE ANNA CASCUDO


Se eu admirava Anna Maria Cascudo Barreto desde o primeiro momento que a vi – e a conheci – em 1992 – ampliou-se em mim esse sentimento tal maneira que vejo-a como uma mulher realmente muito especial.
Seu livro Mulheres Especiais 2, lançado recentemente, difere do convencional, principalmente do comportamento muito comum ao povo norte-rio-grandense, que gosta muito de aparência e valorizar as pessoas segundo suas contas bancárias ou altos títulos, com poucas exceções obviamente.
ANA CRISTINA
 Anna Cascudo sempre agiu de maneira diferente. Herança do pai que era conhecido por soltar os brincantes de “bambelô”, presos durante a madrugada, acusados de baderneiros (assim ela me contou certo dia). Sem se importar com os narizes tortos da “alta sociedade”, Câmara Cascudo chegava às delegacias, requisitado pelos detidos e os libertava. Sabia quão especiais eram aquelas pessoas. Ele as enxergava de maneira diferente do que costumamos ver. Somente seres humanos muito especiais agem assim. Só gênios são assim.
Em seu livro, Anna Cascudo desenrola um novelo de mulheres que destoa do que estamos acostumados a ver. Ela reúne entre pessoas cujos padrões culturais rotularam como “importantes” - com pessoas simples, que não nasceram em berço de ouro, mas nem por isso deixaram de construir histórias especiais. Digam-me quem antes dela biografou, num livro, pessoas tão comuns?
Digam-me, por exemplo, quem publicou um livro enaltecendo, por merecimento, uma mulher gari? É o caso de Ana Cristina, a qual Anna Cascudo a intitulou “sentinela da limpeza”. Cristina é carioca, mas mora em Natal há muitos anos. Vejamos um pouquinho do que a autora escreveu: “(...) é filha de Manoel Lourenço dos Santos, agricultor, peão, marceneiro, e Maria dos Anjos, uma lutadora. Foram onze os filhos do casal, e nossa biografada a oitava. Saíram de Valença e foram para Salvador, tentando uma vida melhor. Sua infância, apesar da pobreza, foi feliz. Brincava na rua, de tica, esconde-esconde, caiu no poço, banho de rio, de mar, de chuva, ida ao Parque da Cidade, andando a pé, cerca de cinco quilômetros. Pulava a janela, roubava frutas no quintal dos vizinhos, subia em árvores. Uma criança saudável (...)”. 
“(...) Hoje casada com o pernambucano Carlos José Bernardo, segurança e dono de um sorriso encantador, ampliou sua casa e deixou à tona seu desejo de ter filhos. Gosta de dançar. Orgulhosa, registra sua passagem pelo Carnatal, sua parceria como destaque da Escola de Samba ‘Malandros do Samba’. Eleita ‘Rainha dos Garis’ em concurso realizado...”. E assim Anna Cascudo segue, biografando-a.
ANA CRISTINA
 Quando eu disse que passei a admirar ainda mais Anna Cascudo, o fiz por reencontrar nessa obra uma mulher abstida de qualquer tabu ou preconceito. Ela sempre enxergou a pessoa humana e seu legado, sem se importar que esse legado seja algo tão simples como o amor e a dedicação de uma pessoa à limpeza de uma cidade, como é o caso de Cristina.
Mais adiante, dentre tantas, ela traz à luz uma síntese biográfica da artesã popular “Luzia Dantas: consagração popular”. Nascida em São Vicente, em 1937. Quando aluno da USP, em 1991, tive o prazer de conhecer esse nome e estudar sua obra. Para mim Luzia é mais que artesã. É artista inata, que não deve nada às academias; citada, inclusive em livros, ensaios, dicionários folclóricos etc. Mas, por incrível que pareça, quando aluno da UFRN, nunca ouvi algum professor citá-la. Terá sido porque veio de lar pobre, diferente do lar que veio a gaúcha Ana Antunes, tão cortejada desde àquela época no RN?
LUZIA DANTAS
LUZIA DANTAS
 Uma cabeleireira foi contemplada. Seria errado? Pelo contrário. Sua iniciativa quebra uma cultura podre, na qual somente a alta sociedade tem o privilégio de ser lembrada em livros. A propósito a história de Da Luz Viana, denominada por Anna “muito além dos cabelos”, é interessante e cheia de episódios curiosos. São histórias de vida que encantam quem as lê. Sua obra lembrou-me Ecléa Bosi em seu fascinante livro de memórias.
STALINE

STALINE
 Outra mulher especial lembrada por Anna Cascudo foi “Maria de Lourdes: vida bordada à mão”. “(...) Dos 73 anos de idade, dona Maria de Lourdes Dantas dedicou 38 anos a sua paixão: bordar toalhas, caminhos de mesa, panos de bandeja”. Assim, bordando, ela sustentou a casa e formou os filhos. Precisa de uma história mais especial?

MARIA DE LOURDES
 Outro nome contemplado, e que revela ainda mais a grandiosidade e a ausência de qualquer tipo de tabu e preconceito por parte de Anna Cascudo, é o da motorista de ônibus “Staline, motorista moderna”. Digo isso porque, independente de ser uma mulher casada com outra mulher, é o tipo de pessoa-exemplo, que perseguiu seu sonho, quebrou preconceitos, tem uma dignidade ímpar. Apesar de ter se formado em Turismo, na UNP, optou pelo sonho de infância: dirigir ônibus em nossa capital.
DA LUZ VIANA
 Se Anna tivesse o ranço podre que muitos carregam, deixaria de contemplar o leitor meramente pela condição sexual da biografada, já que a raiz humilde, por si, consiste em obstáculo para se reconhecer um bom legado. Coincidentemente cheguei a embarcar várias vezes em ônibus conduzidos por ela e perceber que é uma profissional que faz a diferença. Para alguns seria algo “louco” uma mulher ter o sonho de ser motorista de ônibus. Mas não, é apenas mais uma mulher especial, gente do bem, que é feliz fazendo o que gosta, mesmo que esse ‘fazer’ seja simples.
Finalizando, reforço um ponto que costumo ressaltar sempre: admiro demais as pessoas que valorizam aqueles que não tiveram tantas oportunidades, mas conduziram – ou estão conduzindo – os seus sonhos, fazendo o que gostam e colaborando – a seu modo – com as sociedades.

O livro também traz histórias de gente nascida em berço de ouro, que teve todas as oportunidades de construir legados até de repercussão internacional se quisessem, mas que se fizeram especiais com histórias simples, traçadas na velha Natal.
Mas, como já disse, o grande trunfo do livro está no respeito à pessoa humana, independente de suas origens humildes. Ela enxergou gente que mal tinha o que comer, gente cuja mãe abandonou a casa, gente que perdeu tragicamente pessoas que amava, dentre tantas histórias contadas pelas próprias biografadas, os quais, se tivessem ficado esperando a coisa cair do céu, jamais teriam construído histórias especiais.
Anna Cascudo, despretensiosamente, acabou dando uma aula à sociedade potiguar, ensinando que devemos respeitar as histórias de vida, independente de raízes pobres, reconhecendo seus legados cidadãos e dignos de respeito.
Foi muito providencial o título “especial” que Anna Cascudo escolheu para o seu livro. Ela não foi boazinha e nem fez favor a ninguém. Apenas foi respeitosa: como todos deveriam ser. Parece que ela quis lustrar essa palavra para que Natal enxergasse o brilho e a simbologia ímpar de sua acepção, e tivessem o privilégio de ver os outros com suas lentes de sabedoria e brilho. Não é por ser simples que uma história e um legado não podem ser belos e significativos.
Parabéns, Anna! Você sempre será especial!